Neste ano, 78% dos 45 boletins sobre a balneabilidade da Praia de Iracema — mais especificamente a Praia dos Crush —, apresentaram contaminação fecal acima da barreira considerada aceitável. Em 2022, a condição que torna a água imprópria para banho foi identificada em 56% dos 32 boletins produzidos pela Secretaria do Meio Ambiente do Ceará (Semace).
A contaminação com dejetos de esgoto é resultado de ligações clandestinas que geraram, nos últimos quatro anos, 2.697 notificações e 612 autos de infração. De 2019 a 2023, de acordo com a Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis), foram lavrados 49 autos de infração e seis notificações por irregularidades cometidas pela Cagece.
No centro da briga sobre as responsabilidades acerca do sistema de esgotamento sanitário, uma Fortaleza que coleta pouco mais de 50% do seu esgoto. “Isso significa que a capital cearense está ainda bem distante das metas do País de atender pelo menos 90% da população até 2033”, avalia André Rossi Machado, coordenador de comunicação do Instituto Trata Brasil.
Conforme ele, Fortaleza despeja o equivalente a 43 piscinas olímpicas cheias de esgoto na natureza todos os dias. Combater essa poluição é parte das obrigatoriedades contratuais tanto da Prefeitura de Fortaleza, contratante do serviço prestado; como da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), concessionária firmada. Os vínculos entre os entes, renovados em 2019, têm duração legal de 35 anos.
Nas 43 páginas que versam sobre direitos, deveres e metas, facilmente se percebe que é a complementação das diferentes atuações que poderá garantir, por exemplo, o cumprimento do plano de investimentos de curto, médio e longo prazos. “A abertura concreta e o fortalecimento entre a Cagece e a Prefeitura de Fortaleza (...) são pontos essenciais a serem buscados, alcançados e praticados, que resultarão em economias e melhorias ambientais e na saúde pública (...)”, cita o texto do contrato.
“Quando o esgoto não é devidamente coletado e tratado, há maior exposição a doenças, maior custo na saúde pública, impactos negativos no turismo e menor produtividade no trabalho das pessoas. Ou seja, uma série de impactos individuais e coletivos que impedem o desenvolvimento socioeconômico da região”, define o coordenador de comunicação do Instituto Trata Brasil. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2021, mostram que, em Fortaleza, houve 2.886 internações por doença de veiculação hídrica, com registro de sete óbitos.
O imbróglio envolvendo o esgoto a céu aberto na Praia dos Crush, Prefeitura e Cagece pode ser resumido assim: vídeos mostrando o despejo de dejeto na areia e no mar ganham repercussão no início de novembro. O prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT), vai a público afirmar que a poluição era oriunda da Cagece, com um relatório que apontava o total de 22 pontos de ligações clandestinas na rede de drenagem da água pluvial que poluíam a área eram da Companhia.
Por sua vez, a Cagece, acionada pelo Ministério Público do Ceará (MPCE), faz coletiva de imprensa para afirmar que foi a todos os pontos e nenhum era da entidade. Do total, dez seriam lançamentos de águas pluviais (de ar condicionado ou piscina de empreendimentos particulares), três seriam tubulações antigas da Cagece (que não estariam em derramamento) e nove seriam ligações clandestinas de esgoto, também de particulares.
Idas e vindas de acusações sem diálogo direto entre os envolvidos, mesmo o contrato deixando clara a importância dessa interlocução, principalmente sobre a não universalização do acesso à rede de tratamento de esgoto. Um mês após o início da polêmica, a Agefis divulgou o início de uma fiscalização mais apurada, que iria de fato identificar quem são os autores das ligações clandestinas.
Os imóveis identificados pela Agência tiveram dez dias para regularizar a situação. Caso a ligação clandestina não seja tamponada, são emitidas notificações e só depois de 45 dias, persistindo o problema, há aplicação de multa, que pode chegar a R$ 4.050. “O relatório que foi produzido pela Prefeitura foi feito por uma empresa especializada nesse assunto. É um documento de muita credibilidade”, afirma a titular da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), Luciana Lobo.
O POVO solicitou à Agefis, além dos números de fiscalização, as regiões onde as autuações aconteceram. À Cagece, O POVO solicitou informações sobre a quantidade de desobstruções realizadas na rede de esgoto, além do total de extravasamentos. A Companhia informou, através da assessoria de comunicação, que não há monitoramento sobre a clandestinidade dos esgotos e que, sobre os casos de extravasamento, não há quantificação por se tratar de um "serviço de manutenção diário".
2020
2.306 fiscalizações
708 notificações
148 autos de infração
2021
1.858 fiscalizações
468 notificações
127 autos de infração
2022
2.798 fiscalizações
860 notificações
193 autos de infração
2023
2.178 fiscalizações
661 notificações
144 autos de infração
SERVIÇO: ABASTECIMENTO DE ÁGUA E ESGOTAMENTO SANITÁRIO
DAS OBRIGAÇÕES DO MUNICÍPIO
- Regulamentar a prestação de serviço
- Fiscalizar permanentemente a prestação de serviço
- Aplicar as penalidades regulamentares e contratuais
- Zelar pela boa qualidade do serviço, receber, apurar e solucionar queixas e reclamações do usuário
- Ceder à Cagece terrenos públicos que possam ser utilizados nos sistemas de água e esgoto
- Estimular o aumento da qualidade e produtividade dos serviços
- Estimular a formação de associações de usuários
- Zelar pelo cumprimento da legislação federal, estadual e municipal de proteção ambiental e de saúde pública
- Estabelecer os planos e políticas municipais de saneamento e de urbanização, consultada a Cagece, visando o estabelecimento das metas e investimentos de longo prazo
DAS OBRIGAÇÕES DA CAGECE
- Elaborar estudos, projetos e obras
- Garantir a prestação de serviços adequados
- Dar ciência prévia ao Município das obras que pretende executar em vias
- Sinalizar as obras durante toda a sua execução
- Apresentar prestação de contas a cada quadrimestre
- Publicar demonstrações financeiras anualmente
Regulação do serviço da Cagece será do Estado
Em 2024, a regulação e a fiscalização sobre o serviço de esgotamento sanitário e abastecimento de água em Fortaleza vão sair da responsabilidade Municipal e passarão a integrar o escolpo de atuação da Agência Reguladora do Ceará (Arce).O contrato entre o titular do serviço, no caso a Prefeitura de Fortaleza, e a concessionária, a Cagece, expõe as obrigatoridades de cada parte, justamente para que não haja dúvidas sobre o que deve ser feito por quem, com vistas a cumprir o principal objetivo — e de necessidade básica: universalização de 90% de acesso ao esgoto tratado até 2033. Em Fortaleza, 1,1 milhão de pessoas (44% da população) ainda vivem sem coleta dos dejetos produzidos."O Município precisa ser gerido como o elemento vivo que é, para que se possa planejar as soluções que vão atender às demandas do dia a dia", destaca André Rossi Machado, coordenador de Comunicação do Instituto Trata Brasil. Gerir a dinâmica sobre o destino dos dejetos exige participação ativa de diferentes segmentos, necessidade respaldada pelos impactos em diferentes frentes: saúde, turismo, emprego, educação.Nessa rede de responsabilidades, as agêncais reguladoras ganham destaque. De acordo com o coordenador do Trata Brasil, elas são responsáveis por observar o atendimento e demandar soluções."A melhor prática é de que haja um contrato detalhando o escopo de trabalho, para que se tenha um acompanhamento das metas e transparência junto à população. Sobre como os serviços serão prestados e se alguma irregularidade está acontecendo", explica. Para André, não deve haver qualquer divergência sobre a atuação tanto do titular do serviço como da concessionária, como visto no últimos mês na Praia de Iracema."A responsabilidade é normativa. A prestação de serviços deve ser fiscalizada sob os parâmetros acordados em contrato pelos agentes reguladores. E os ajustes de operação devem ser feitos de forma constante, para que haja equilíbrio, e o serviço alcance toda a população", frisa.O conselheiro da Arce, João Gabriel Rocha, explica que as tratativas atuais são normais de um período de transição entre Agência de Regulação, Fiscalização e Controle dos Serviços Públicos de Saneamento Ambiental de Fortaleza (ACFor) e Arce. "Estamos nos informando sobre as metodologias, os cálculos tarifários, as demandas de ouvidoria. Aos poucos estamos absorvendo tudo para as normas próprias e começar a atuar", afirma. A revisão tarifária, uma das principais demandas da agência reguladora do serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário, considera índices de qualidade da coleta e distribuição, de satisfação dos usuários, do atingimento de metas. Questões perpassadas pelas ligações clandestinas, da falta de acesso e poluição do meio ambiente."Será um desafio significativo, sabemos disso. Por isso, praticamente todos os dias estamos nos reunindo com as coordenadorias de saneamento básico, Secretaria das Cidades e outras agências. E já temos reunião agendada com a ACFor para se apropriar da fiscalização e dos critérios estabecelecidos nas normas", detalhou. João Gabriel ressalta ainda a importância de uma agenda de transição regulatória e a competência do corpo técnico da Arce. Questionado sobre a mediação de conflitos como o vivido no último mês em Fortaleza, o conselheiro frisa que a busca deve ser pela "resposta efetiva ao usuário, porque são as pessoas que estão sofrendo com tudo isso. A Agência tem esse papel de ser um fator de equilíbrio entre o titular do serviço, a concessionária e o usuário".
Nota
O Ministério Público do Ceará (MPCE) informou, através de nota, "que foi instaurado procedimento na 2ª Promotoria de Justiça de Meio Ambiente e Planejamento Urbano de Fortaleza para apurar denúncias de ligações clandestinas de esgoto na rede de drenagem que deságua na Praia de Iracema, na Capital. O MP solicitou informações à Prefeitura e à Cagece e está analisando as respostas oferecidas. Uma audiência também será agendada para cobrar soluções aos órgãos envolvidos"