A vontade de qualquer especialista em Relações Internacionais é poder comentar ao final do ano que a situação está melhor, os países cooperam e as previsões são otimistas. Infelizmente, 2023 marca o oposto. A ausência de estabilidade atual deve ser entendida a partir das frentes geopolítica, ideológica e socioeconômica. Isso já demonstra a complexidade das relações entre atores estatais e não-estatais e tende a aumentar e dificultar análises prospectivas.
Em termos geopolíticos, o divisor Norte-Sul ganha força na disputa entre os Estados Unidos e a China, ou melhor, do ocidente e os demais. A guerra comercial em operação desde o governo Trump foi reforçada por Biden e a retórica anti-China tornou-se o único consenso. Além disso, o conflito na Ucrânia e a incapacidade de manter recursos e aliados mostra que a hegemonia aventada em 1990 deixou de existir.
A eclosão da guerra de Israel contra a Palestina, em outubro, ajudou a perceber ainda mais essa divisão global. Em praticamente todas as resoluções no Conselho de Segurança, os EUA vetaram tentativas de cessar-fogo e mantiveram-se intransigentes na defesa dos israelenses. O padrão de votação da ONU reflete a incapacidade de construir diálogos entre as potências.
A guerra que Israel trava com a Palestina se insere ainda em outro contexto: a ascensão da extrema direita e do discurso ultranacionalista contra minorias. Exemplos podem ser encontrados em Índia, EUA, Brasil, França, Filipinas etc. Israel não foge à regra, e adota uma narrativa de excepcionalidade que busca justificar o corrente genocídio contra palestinos. Essa contraposição reforça estereótipos racistas de povos superiores e inferiores, do bem contra o mal.
Essa clivagem geopolítica e ideológica é ainda retrato de um mundo desigual. O acesso à tecnologia e recursos ainda depende de fatores que a maioria dos países não consegue alcançar. Se hoje a extrema direita ganha espaço é porque o sistema falhou em acomodar as demandas daqueles que não foram contemplados por uma globalização cada vez mais radicalizada.
Décadas de pesados ajustes, privatizações e desregulamentação econômica resultaram na diminuição de direitos e garantias que fragilizaram aqueles que hoje pedem por políticas mais duras e excludentes. Países do chamado Sul Global buscam chamar a atenção para questões ignoradas pelas grandes potências.
Esses países fazem um apelo à reforma das instituições internacionais, a um projeto de desenvolvimento e à construção de regras que contemplem os interesses de todos. Gostaria de poder dizer que teremos paz e virtude nos próximos anos, mas o cenário parece oposto.
O papel do Brasil deve permanecer de mediador, propositor e construtor de uma nova ordem. É possível dizer que se trata de oportunidade para construir novos laços e diversificar a liderança para servir de exemplo. Que 2024 nos reserve os melhores encontros.
Lucas Leite: Professor doutor em Relações Internacionais na Faap e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU)