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Patrimônio para todos: formação para descobrir uma Fortaleza escondida
Reportagem

Patrimônio para todos: formação para descobrir uma Fortaleza escondida

| Memória | Iniciativa da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho propõe estimular jovens a conhecerem a cultura e a história dos próprios bairros
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Projeto Patrimônio Para Todos completa 15 anos em 2024 (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Projeto Patrimônio Para Todos completa 15 anos em 2024

Se Fortaleza pudesse falar, poderia contar histórias de pessoas e locais que muitos nem imaginam. Por trás dos prédios, da orla, dos shoppings e da realidade maquiada da Terra do Sol, existe uma senhora que se senta na calçada todos os dias e está escrevendo uma história, ou um senhor que espera no ponto para vender café com tapioca recheada de reminiscência de quando era moço jovem e a cidade tinha outra configuração. Vivências, histórias e convivências, patrimônios imateriais de uma cidade.

Da vontade de contar as histórias dessas pessoas espalhadas pela Capital, nasceu, em 2009, o projeto "Patrimônio para Todos: uma aventura através das memórias", da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho — equipamento da Secretaria de Cultura do Ceará. A proposta é visitar diferentes localidades e oferecer oficinas de educação patrimonial aos jovens.

Os jovens formados no projeto aprendem sobre a importância de preservar a história do bairro, com os "patrimônios (in)visíveis", e passam a mapear estruturas, locais ou até mesmo pessoas, chamadas de guardiões da memória, são essas e, de alguma forma, eternizá-las.

No ano passado, entre agosto e novembro, o projeto lançou o olhar sobre cinco territórios: Canindezinho, Grande Mucuripe, Poço da Draga, Serrinha e Conjunto Ceará. A organização seguiu o padrão de três dias de oficina sobre educação patrimonial e dois dias de visita de campo para o mapeamento dos patrimônios ou guardiões da memória.

Gestora executiva da Escola de Artes e Ofícios, Maninha Morais pontua que o projeto tem o objetivo de expandir a atuação do equipamento para além de seus muros, de forma a despertar consciência crítica sobre a importância da valorização do patrimônio por meio da educação.

“As oficinas nas comunidades provocam uma reflexão nos jovens sobre o que, de fato, é patrimônio, alarga o conceito de patrimônio, demonstrando que a memória afetiva das comunidades tem um valor patrimonial também, não somente os bens consagrados e tombados”, compartilha.

Ela conta ainda que nos últimos dois anos, o projeto contemplou bairros periféricos da Capital justamente por serem invisibilizados e marginalizados pela sociedade, e, ao chegar nestes locais, o projeto estimula nos jovens e nos moradores uma reflexão sobre suas comunidades.

“Isso ajuda a gerar um sentimento de pertencimento e identidade, porque a periferia é também lugar de memória e de muita potência criativa e cultural. Eu acredito que, através do 'Patrimônio para Todos', estes jovens muitas vezes passam a enxergar seus bairros de outra forma, rompendo com estigmas sociais”, diz.

A gestora diz que o sentimento é de orgulho pelas trocas e descobertas conquistadas em cada visita. “Acredito que conseguimos deixar em cada localidade uma semente que pode mexer positivamente com a vida desses jovens. É comum acontecer de jovens que participaram do projeto em edições passadas buscarem a Escola (de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho) para fazer cursos e se aprofundarem na temática do patrimônio”, ressalta.

“Temos alunos que viraram facilitadores do Projeto. E facilitadores que hoje estão na equipe de coordenação. Isso é algo fundamental, porque precisamos estimular nas gerações mais novas a valorização do patrimônio como um direito essencial para a cidadania”, finaliza.

Canindezinho: onde a solidariedade e a cultura andam juntas


As visitas se iniciaram em uma segunda-feira, 28 de agosto, tendo como ponto de partida o Centro de Defesa Herbert de Souza, onde os alunos participaram de oficinas sobre educação patrimonial e a importância destes para a preservação da identidade das comunidades.

A busca pelos patrimônios (in)visíveis, conforme denomina o projeto, começou no quarto dia de oficina, quandos os estudantes foram às ruas entrevistar os guardiões da memória e identificar as estruturas que ajudam a manter viva a história do bairro. O facilitador Luiz Fernando, de 25 anos, conta que nas oficinas os alunos têm a oportunidade de mapear junto aos alunos o inventário de patrimônios da comunidade.

“É interessante perceber que às vezes as pessoas vêm para a oficina sem uma ideia do que é patrimônio, sem sequer imaginar que existe um patrimônio na comunidade, elas vêm com as perspectivas que aprendemos em sala de aula. E aqui eles vão aprendendo que uma pessoa, uma entidade e projetos podem ser patrimônios daquele bairro ", destaca.

No bairro, os alunos tiveram a oportunidade de conhecer lugares como o Centro Cultural do Canindezinho e o Projeto Irmão Sol, Irmã Lua. Os guardiões da memória entrevistados foram o seu Ivan, da União dos Moradores do Bairro Canindezinho e a dona Bernadete, que iniciou sua trajetória na comunidade cristã e depois desenvolvendo trabalhos de combate à fome.

Membro do Ponto de Memória do Grande Bom Jardim, Adriano Almeida comenta que o patrimônio, enquanto política pública, consegue fortalecer iniciativas comunitárias em memória social e museologia comunitária.

“Cremos que o Patrimônio ajudou a visibilizar esse nosso lugar na história aos jovens, assim como os conteúdos inventariados por eles e elas, mesmo em um curto tempo, visualizaram o bairro Canindezinho na cidade, no Estado, na região, quiçá no País”, pontua.

 

O Grande Mucuripe escondido por trás da especulação imobiliária

Na outra ponta de Fortaleza, a trilha do projeto foi guiada ao Mucuripe, no dia 11 de setembro. Lá, os alunos puderam conhecer a realidade do bairro fugindo da orla e das estruturas prediais.

Pelo bairro, os alunos conheceram a Praia dos Botes, o Mercado dos Peixes, a Praça do Castelo Encantado, além de conversarem com o turismólogo e idealizador do Acervo Mucuripe — que também foi local de visita –, Diego di Paula e as professoras Marcela Nogueira e Eliete Nogueira.

Sentado em um banquinho, Diêgo mostra aos alunos um Mucuripe por trás da especulação imobiliária e como as memórias ajudam a contar a história do local. “Com certeza vocês já devem ter ouvido em algum lugar, alguma pessoa da própria comunidade ou alguém de fora dizendo ‘não vai ali que é perigoso’, Padre Zé Nilson ouviu isso antes de vir pra cá, e ele decidiu vir para cá, ele decidiu entender o que era esse perigo, que era a tentativa de pessoas de continuarem nesse lugar”, relatou.

Evellyn Freitas, de 14 anos, conta que a experiência foi gratificante. “Eu tinha uma disciplina eletiva na escola de educação patrimonial e nela a gente fez várias descobertas sobre nosso patrimônio e sobre a nossa história. E compartilhar os conhecimentos tem sido uma experiência incrível”, disse.

Karolayne Ferreira, facilitadora no bairro, conta que a participação no projeto faz com que as pessoas prestem mais atenção ao que as rodeia. “É perceptível a dedicação empregada por todos os envolvidos na idealização e coordenação para fazer com que todas as etapas sejam realizadas da melhor forma possível, e esse sentimento é passado adiante, seja para os facilitadores, seja para aqueles participantes em cada bairro”, reforça Karolayne.

A visita ao Mucuripe terminou no dia 15 de setembro com visitas em campo e conversas com os guardiões da memória.


Poço da Draga de artes e amores

“A nossa comunidade se movimenta muito. Aqui todo dia vem gente de faculdades, a gente se articula muito, a gente tem muita coisa. O Poço da Draga é amor, aqui é um pedacinho do Interior que veio para cá”. Quem disse foi a dona Ivoneide Gois, de 58 anos, enquanto mostrava suas memórias. Comemorando 117 anos de história, a comunidade na Praia de Iracema resiste em meio a relatos de amor e companheirismo de quem a faz.


Em setembro, os alunos do "Patrimônio para Todos" se reuniram no Coletivo Fundo da Caixa para entender os meandros da especulação imobiliária que invadiu aquelas áreas. No coletivo, os alunos se reuniram para as oficinas e para conhecer mais sobre o Poço da Draga.


Moradora do bairro, Mayara Bernarda, de 35 anos, diz que a visita do projeto foi de extrema importância por se voltar aos jovens. “Não tem preço o que o projeto trouxe, essa proposta de vivenciar dando o devido valor e atenção a comunidade, o que aumenta o respeito que temos pelos nossos patrimônios e o que temos na nossa comunidade”, contou.


Neta de dona Raimunda Bernarda, Mayara pontua ainda que Fortaleza precisa conhecer o que o bairro tem melhor. “O Poço da Draga é arte, existem muitos patrimônios vivos e artísticos que precisam ser conhecidos. Sem dúvida, o patrimônio daqui vai desde o grafitti à produção da comida típica e acho que esse lado deve ser explorado, além de ouvir o que os moradores têm a dizer”, relata.


Os alunos tiveram a oportunidade de ouvir alguns guardiões da memória, dentre eles, dona Raimunda Bernarda e dona Ivoneide Gois. A primeira é uma das moradoras mais antigas do bairro e, com um sorriso no rosto, diz que a comunidade é tudo para ela. “Aqui é tranquilo, as pessoas conhecem uma coisa, mas não é assim. A gente tem amizade, a gente tem muitas boas lembranças e histórias para contar”, diz.

Serrinha: a construção de um mapa do afeto

Em meados de outubro, a Serrinha foi palco das descobertas dos alunos, que se reuniram na Associação dos Moradores do bairro para aprender sobre patrimônio e mapear, junto aos facilitadores, os patrimônios e guardiões da memória daquele local.

A facilitadora nesta etapa, Bruna Vale, relata que é muito importante que os alunos entendam alguns conceitos para conseguir associar com as suas vivências pessoais. “A partir daí, contamos com a criação de dinâmicas para descobrirmos os locais de afeto do bairro para os participantes. A principal atividade que demarcou os percursos foi o mapa de afeto do bairro da Serrinha”, descreve.

No mapa, os alunos pontuam locais importantes, memórias afetivas e festividades, referências culturais, lendas urbanas. “É muito importante que a educação patrimonial seja ensinada, preservada e citada, só assim poderemos construir uma cidade melhor para se viver, e assim, podemos contar a nossa história, através das nossas memórias e dos nossos lugares de afeto, dos guardiões da memória”, finaliza.

Robério Batista, mestre da escola Capoeira Água de Beber, Robério Batista foi um dos que compartilhou sua experiência no bairro. O professor relata que é uma satisfação receber o projeto que é idealizado pelos jovens da periferia. “A gente vê a pluralidade na questão racial na questão de gênero e uma das coisas que eu achei interessante foi a quantidade de jovens envolvidos e interessados por essa causa”, diz.


O mestre de capoeira ressalta ainda a necessidade de preservar a identidade do lugar e que a preservação do imaterial é uma forma de valorizar a ancestralidade e um resgate do conhecimento tradicional.


“Um povo sem história, sem memória é um povo vulnerável. Então esse trabalho que a gente recebeu no nosso terreiro de capoeira foi assim, de uma importância fundamental, eu fico bem feliz de poder participar de um projeto desse que eu sei que tem resultado bons para a comunidade”.


Conjunto Ceará e a pluralidade de visões que contam sua história

Berço de expressões culturais e de forte memória afetiva, o Conjunto Ceará foi a última parada do "Patrimônio para Todos". Lá, os alunos puderam mapear o bairro e conhecer de forma mais concreta a história de uma comunidade imbricada na vida de cada menino e menina que participou das atividades.


Os locais de memória identificados pelos alunos pelo Conjunto Ceará foram a horta social – que fica nas proximidades do Centro de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH), o polo de lazer Luiz Gonzaga, o espaço cultural Maculelê, o espaço cultural Patativa do Assaré, a lagoa e a praça do EEFM Doutor Gentil Barreira (UV2).

Além de expressões culturais como a capoeira e as batalhas de rima, os alunos conversaram com os guardiões da memória seu Lula, um senhor que trabalha com conserto de câmeras analógicas, o senhor José Valderi de Oliveira, o senhor Vicente de Paula, Wesley Barbosa e Paulo Eduardo Santiago, conhecido como Sukita.

Diversidade cultural e respeito foram temas de conversa entre os alunos, que ampliaram o questionamento do motivo de alguns patrimônios serem invisíveis. A arquiteta e urbanista Beatriz Paiva pontuou que, com as rodas de conversa, alguns alunos disseram que conseguem se compreender melhor em relação ao bairro.


“Os alunos são estimulados a pensar na diversidade cultural e plural que o Conjunto Ceará tem. Com isso, a gente desenvolve a empatia para compreender as diversas histórias que o local conta, ter a oportunidade de vivenciar histórias diferentes, fazendo que haja entendimento e apreciação mais profunda pela diversidade”, relata.


Ela diz que ter esse contato com o bairro é interessante, potente e com uma história muito bonita, de muito desenvolvimento dos moradores, lutas sociais por direitos a moradia e a cultura. “Espero que essa seja uma oportunidade que possa ser reaplicada em outros contextos em outras comunidades”, ressaltou.
O ciclo 2023 do projeto finalizou no dia 10 de novembro com as visitas de campo no Conjunto Ceará.

Ações como esta da Escola de Artes e Ofícios oportuniza que os jovens conheçam um outro lado de Fortaleza que talvez fique de fora dos holofotes. Além da forte influência positiva na vida dos alunos que participam, as atividades fazem com que as comunidades visitadas se sintam acolhidas e pertencentes a tudo que ajuda a escrever a história da cidade.

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