Logo O POVO+
Costa ameaçada: os impactos da erosão no litoral cearense
Reportagem

Costa ameaçada: os impactos da erosão no litoral cearense

Processo, que ocorre de forma natural e como efeito de ação humana, tem feito faixas de areia de importantes praias do Estado diminuírem
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Luís Parente coordenou estudos do Programa Cientista Chefe (Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Luís Parente coordenou estudos do Programa Cientista Chefe

De Icapuí a Barroquinha, a linha de costa que envolve e abraça municípios cearenses está sob alerta. Sofrendo o impacto da construção de obras de engenharia costeira— aliado a condições naturais —, faixas de areia de importantes praias do Estado diminuem gradualmente, sendo engolidas por um mar que avança em áreas urbanas e ameaça ecossistemas e dinâmicas sociais.

Um relatório produzido pelo programa Cientista Chefe, iniciativa da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico (Funcap), do Governo do Estado, mostra que 18% da linha de costa do Ceará está sob erosão severa, ação que ocorre quando as praias perdem mais sedimentos do que recebem, segundo definido em materiais institucionais e explicativos do projeto.   

O documento, patrocinado pela Secretaria da Infraestrutura do Ceará (Seinfra), também traz dados apontados no Panorama da Erosão Costeira no Brasil, estudo feito pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) e divulgado ainda em 2018. Dentre eles, está o de quase metade (47%) do litoral cearense é afetado por algum tipo de processo erosivo.

Considerando a situação por regiões, relatório aponta que a linha de costa do Nordeste, que totaliza 3.317 km, apresenta percentual médio de 28,3% das praias em erosão. Isso significa dizer que, ao todo, 939 km do litoral está sujeito a este fenômeno.                 

Neste cenário, o Ceará aparece como a segunda Unidade Federativa da localidade com o segundo maior percentual da costa em erosão, só atrás do Rio Grande do Norte (60%). Em terceiro vêm Piauí (45%), Pernambuco (32%) e Sergipe (28%). 

Entretanto, quando considerado o comprimento total das praias da região em erosão, o estado cearense é a unidade federativa mais afetada em números absolutos, com 269 km do litoral sendo afetados. Rio Grande do Norte (246 km) e Bahia (186km) formam o top-3 dos mais ameaçados.

A erosão não é algo novo, ocorrendo no Nordeste desde o período colonial. O estudo, porém, mostra que o processo tem acelerado nos últimos anos. Para entender essa ação e o impacto que ela causa é preciso, no entanto, compreender antes a dinâmica que possibilita o equilíbrio sedimentar.

Fábio Perdigão, pesquisador do Programa Cientista Chefe, explica que as praias estão sempre perdendo sedimentos. Isso pode ocorrer pelo impacto do avanço da maré, alterações nas bacias hidrográficas ou por ações humanas como execução de obras costeiras sem planejamento de impacto, ocupação desordenada do litoral e retirada de areia de dunas.

Em contraponto, o litoral recebe fragmentos que vêm dos rios e são transportados pela corrente de deriva litoral, feito uma "reposição". O que acontece, no entanto, segundo o especialista, é que nas últimas décadas algumas obras costeiras interromperam a corrente de transporte de sedimentos. Uma delas foi o Porto do Mucuripe, em Fortaleza.

Criado na década de 1980, o equipamento chegou a fazer com que 90% das areias que deveriam ser transportadas ficassem retidas na região portuária, segundo Perdigão. Com isso, praias da Barra do Ceará, em Fortaleza, e Iparana e Tabuba, em Caucaia, passaram a receber menos fragmentos do que perdiam. 

Além disso, ele cita que a construção do Castanhão, ainda que "importante para o desenvolvimento" do Estado, afetou a Praia de Fortim, uma vez que a obra acabou deixando os sedimentos que seriam transportados para essa área "presos". Sem conseguir fazer a "reposição", a faixa de areia que passa por esses processos começa então a diminuir. Esse déficit de sedimentos é que define o processo erosivo.

De acordo com relatório, o processo de erosão também segue sendo acelerado por um fator que afeta o mundo e tem preocupado cada vez mais especialistas: a crise climática.

Perdigão, que é Doutor em Oceanografia Ambiental e Costeira, argumenta que a areia da faixa litorânea funciona como um "amortecedor de ondas" e, conforme a maré avança, os grãos têm a capacidade de absorver a energia e compartilhar a mesma entre eles, diminuindo o impacto da água. Com o aumento da liberação de CO2, o nível do mar se eleva e, consequentemente, há mais atrito contra a costa. 

Em regiões que sofrem com a erosão — portanto, sob déficit de sedimentos —, o impacto das marés altas acaba sendo mais significativo devido à falta de areia necessária para amortecer o processo. 

A junção desses fatores, naturais e de força humana, desenha um cenário alarmante. Para se ter uma ideia, o coordenador da pesquisa, Luís Parente, aponta que só entre 1991 a 2000 a área de erosão da costa de Extremo Oeste (de Itarema a Barroquinha), chegou a quase 1.300 hectares — equivalentes a 1.821 campos de futebol de padrão Fifa.

"São perdas muito grandes, significa perdas econômicas, sociais, de ecossistemas costeiros que são afetados bastantes por essa erosão", aponta o especialista, que atua ainda como secretário da Associação dos Profissionais de Geologia do Ceará (APGECe).

 

Porcentagem das linhas de costa dos estados afetados pra erosão costeira

  1. Rio Grande do Norte - 60%
  2. Ceará - 47%
  3. Piauí - 45%
  4. Pernambuco - 32%
  5. Sergipe - 28%
  6. Bahia - 20%
  7. Alagoas - 14%
  8. Maranhão - 10%
  9. Paraíba - 5%

Fonte: MMA

 

Praia de Morro Branco, em Beberibe, está entre as 20 praias que mais encolherão no mundo até 2100
Praia de Morro Branco, em Beberibe, está entre as 20 praias que mais encolherão no mundo até 2100

Beberibe é o município que apresenta maior percentual de área de risco

Conforme listado pela Secretaria de Meio Ambiente e Mudança do Clima (Sema), o Ceará possui oficialmente 23 municípios costeiros. Destes, o relatório do Programa Cientista Chefe mostra que 18 apresentam área de risco pela erosão. O caso mais preocupante é Beberibe, com 45%.

Em agosto, o site de acomodações Hawaiin Islands divulgou levantamento que apontava a Praia de Morro Branco como uma das 20 que mais devem perder faixas significativas de areia até 2100.

Luisiario Batalha, 60, viu de perto a dinâmica dessa faixa do litoral cearense mudar. Ele mora em Beberibe há 35 anos e tem uma barraca na Praia de Morro Branco há quase duas décadas. Com o tempo, o empresário foi vendo a faixa de areia diminuir, ao passo que o número de frequentadores também caia.

"Era uma outra praia, tinha uma faixa de areia bem maior, passava mais segurança ao turista (...) A nossa faixa de praia hoje encurtou, diminuiu, antes nós não estávamos dentro da faixa de praia mar e hoje nós estamos praticamente dentro da faixa de praia mar", pontua.

Além disso ele cita que hoje os pescadores precisam compartilhar o espaço com empreendedores locais e conta que, para resistir ao avanço do mar, foi preciso reforçar a estrutura da barraca com sacos de areia e cimento. O sentimento que tem ao acompanhar as mudanças, conforme diz, é um só: tristeza.

De acordo com Luís Parente, outra área de Beberibe que sofre com erosão é a Prainha do Canto Verde. Ele conta que o Programa Cientista Chefe está realizando estudos para mensurar qual a obra necessária para frear o avanço do mar na região. À princípio seria a de um enrocamento aderente.

O especialista explica que a estrutura funciona por meio de rochas colocadas num paredão, de forma que a areia não fuja. "É uma obra de melhor custo benefício, um custo mais baixo, e você tem uma resolução definitiva da erosão", diz.

Municípios costeiros que possuem mais área de risco pela erosão

  1. Beberibe: 45%
  2. Cascavel: 34%
  3. Acaraú: 30%
  4. Aracati: 30%
  5. Icapuí: 29%
  6. Barroquinha: 24%
  7. Paracuru: 20%
  8. Amontada: 19%
  9. Itarema: 19%
  10. Fortim: 19%
  11. Itapipoca: 15%
  12. Aquiraz: 13%
  13. São Gonçalo: 8%
  14. Trairi: 7%
  15. Caucaia: 7%
  16. Jijoca de Jericoacoara: 3%
  17. Fortaleza: 3%
  18. Camocim: 3%
Praia da Peroba, em Icapuí, enfrenta degradação causada pela erosão
Praia da Peroba, em Icapuí, enfrenta degradação causada pela erosão

Degradação impacta ecossistemas e dinâmicas sociais

Conforme o pesquisador Fábio Perdigão, o aceleramento do processo erosivo causa danos diversos. Dentre eles, há o empobrecimento da vida marinha. Profissional explica que a diminuição das praias acaba tirando o habitat natural de alguns animais, como caranguejos, moluscos e camarões.

Além disso, a redução da faixa de areia afeta o lazer, uma vez que o ambiente praiano é um espaço onde a população pode se divertir de forma gratuita. Caucaia é uma das cidades que viram nos últimos anos a alteração da sua costa mudar a dinâmica social.

Segundo o Plano de Gestão Integrada da Orla (PGI) do Município, entre 1991 e 2013 as praias do Icaraí e do Pacheco sofreram recuo médio de linha de costa de 5,41 metros anuais, perdendo quase 120 metros de faixa de areia. Documento pontua que a cidade sofre com o impacto de obras de engenharia costeira em Fortaleza, que "interrompeu o fluxo natural sedimentar que abastecia o litoral".

O processo erosivo também causa danos sociais e financeiros, afetando a vida de moradores e afetando negativamente o turismo. Em Icapuí, no extremo leste, na mais recente década o avanço do mar tem acelerado a erosão na área, que contém diversas casas de veraneio e forte potencial turístico.

Na Praia de Peroba, por exemplo, o problema danificou pistas de acesso e a estrutura de casas na costa, aumentando o risco de colapso. Para tentar conter a maré no local, a Prefeitura vai construir um espigão. No entanto, enquanto a medida não é executada, os moradores seguem vítimas dos impactos erosivos.

É o caso de Raimundo Isael, 40, pescador que mantém uma casa de praia na região. Há algumas semanas, o avanço do mar foi tão forte que invadiu a residência e fez com que os locatários tivessem que sair do local. Junto deles, foi embora boa parte do faturamento.

"As pessoas que estavam na casa alugada tiveram que ir embora porque a maré avançou muito na minha casa, está hoje quase caindo, e tive que cancelar todos os aluguéis que estavam ate o mês de janeiro. Como eu não tenho uma previsão de solução eu já cancelei também os alugueis do Carnaval, da Semana Santa. Toda renda que ia entrar nesse primeiro trimestre do ano eu perdi", desabafa.

O prejuízo acabou afetando diretamente pessoas que trabalhavam ajudando na manutenção e na limpeza da casa. Pelas contas de Isael, pelo menos três famílias foram prejudicadas ao todo.

Já Alciano da Cruz, 50, encontrou uma forma de evitar que seus negócios acabassam ante o avanço do mar. O pescador, que também tem uma casa de praia em Peroba, há pelo menos nove anos faz uma espécie de contenção, com madeira e lona, para criar um "túnel" que facilita a entrada e a saída da água.

A engenhoca ajuda a conter o mar quando ele se "revolta" mas, por outro lado, também deixa o bolso do proprietário "refém". O microempreendedor calcula ter investido cerca de R$ 70 mil com a manutenção do equipamento. "É um custo muito alto (...) Mas vejo que funciona", dispara.

Além disso, Cruz conta que apesar da frente da casa estar protegida, os arredores seguem sofrendo. No início desse mês, por exemplo, o mar atingiu a lateral de seu terreno e chegou a desmanchar um pedaço de cerca, o que gerou mais custos.

Como funciona a erosão costeira:

01: A erosão costeira é provocada pelo desequilíbrio de sedimentos no litoral. Ou seja, quando a praia perde mais areia do que recebe.

02: Esse processo tem causas naturais, como flutuações do nível do mar, alteração nas bacias hidrográficas e eventos externos como terremotos e tsunamis.

03: Ação também pode ser intensificada por ações do ser humano, como obras costeiras sem planejamento, ocupação desordenada da zona litorânea, construção de barragens e retirada de areia de praia e dunas para usos diversos.

04: A intensificação dessas ações naturais e humanas acaba fazendo com que a linha de costa receba menos fragmentos do que ganhe, o que faz com que a faixa de areia diminua de tamanho e cause a impressão de pouco a pouco "sumir".

 

Ações sustentáveis podem ajudar a "vencer" projeções

Quando se trata do futuro, o cenário pode ficar ainda mais alarmante. De acordo com dados da Agência Espacial Norte-Americana (Nasa), o nível do mar pode subir até 1,20 metro em 100 anos no Nordeste do Brasil. Isso aconteceria em função do cenário de emissão de gás carbônico (CO2).

Segundo o pesquisador Luis Parente, coordenador da pesquisa sobre a erosão na costa cearense, a resposta ao nível de subida do nível mar "depende da inclinação da praia". Quanto mais plana, mais a área fica suscetível a erosão. O estudo da Nasa mostra, por exemplo, que até 2120 Acaraú pode sofrer recuo de até 250 metros na linha de costa.

"Dependendo de qual cenário, se nós formos mais conservadores, se protegermos mais a natureza, se usarmos mais energias verdes alternativas, poderemos diminuir certa emissão de CO2. Mas pelo contrário, se nós continuarmos utilizando combustível fóssil, contaminando essa atmosfera em níveis que temos hoje, a tendência é agravar cada vez mais essa erosão", analisa Parente.

O cientista chefe explica que o estudo feito pelo programa será seguido ainda pela elaboração de dois relatórios. O projeto elaborou mapas de sistemas ambientais municipais, mostrando quais são os locais de risco apresentados nas cidades, e identificou as zonas de planejamentos e estudos para as comunidades mais afetadas, visando procurar soluções específicas para cada um desses municípios.

Maria Ferreira, diretora do Programa Internacional da Coastal & Marine Union- EUCC, uma ONG europeia baseada na Holanda, aponta que o estudo é um ponto de partida importante para que sejam encontradas soluções para a erosão marinha. "Erosão é uma dinâmica natural da costa, uma dinâmica costeira (...) Mas nós temos que entender bem essa dinâmica e a interação humana com essa dinâmica", diz.

Com atuação internacional, a especialista aponta a erosão é um problema mundial. "(Antes de) Qualquer intervenção (para conter processos erosivos) tem que ser feito um estudo de impacto ambiental e considerar formas de engenharia mais suaves (...) Que devem ser usadas em ambientes e em áreas mais sensíveis", destaca.

 

O que você achou desse conteúdo?