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O desafio da preservação da memória de Fortaleza
Reportagem

O desafio da preservação da memória de Fortaleza

| Cidade esquecida | Política de resguardo da memória da Capital não é bem desenvolvida, sendo atropelada por interesses privados, segundo especialistas
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Fortaleza, CE, BR  05.03.24 - Início da Demolição do Edifício São Pedro  (Fco Fontenele/OPOVO) (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Fortaleza, CE, BR 05.03.24 - Início da Demolição do Edifício São Pedro (Fco Fontenele/OPOVO)

Há sete décadas, o Edifício São Pedro foi sinônimo de opulência e desenvolvimento urbano em Fortaleza. Com a demolição em curso devido a riscos estruturais graves, é visível o abandono do projeto que um dia foi inovador. O pioneirismo na arquitetura e no modo de ocupação da cidade foi o que elevou o prédio a  marco na orla da Capital.

Inspirado em hotéis luxuosos de Miami, nos Estados Unidos, o edifício despertou o uso cotidiano e hoteleiro da Praia de Iracema, que antes contava apenas com casas de veraneio. Nos anos 1950, antes mesmo da existência da avenida Beira-Mar, o Iracema Plaza Hotel — como era chamado — reuniu a elite de uma cidade à procura de modernidade.

O arquiteto Marcelo Capasso explica que o edifício também é considerado um marco paisagístico pelo formato em que foi construído, se assemelhando a um navio.

"As pessoas vão entendendo que aquilo marca de alguma maneira a identidade da cidade e começam a manter uma relação de afetividade com esses artefatos materiais, como sendo uma parte da história delas", explica.

Apesar de o prédio se manter na memória afetiva de Fortaleza, a preservação dele não foi uma prioridade. "A demolição do São Pedro marca essa impossibilidade de efetivar a política de preservação", afirma o pesquisador nas áreas de planejamento urbano e patrimônio cultural.

O antigo hotel chegou a ser tombado provisoriamente pelo município em 2006, quando ainda existiam moradores e o cenário não era de ruínas. Ao contrário do que era comum na política de preservação do município, conforme o pesquisador, o edifício não foi desapropriado. Com o passar dos anos, não foram feitas intervenções para manter a estrutura do imóvel, ainda de responsabilidade dos proprietários.

Em 2017, chegou a ser apresentado ao Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural de Fortaleza (COMPHIC) um projeto para a construção de um prédio de 23 andares na parte central do edifício, preservando a fachada e alguns apartamentos, mas nunca foi concretizado.

Poucos anos depois, em 2021, a Prefeitura revogou o tombamento provisório pela impossibilidade de restaurar o edifício. O Governo do Estado também demonstrou interesse na recuperação do imóvel em 2022, mas desistiu da empreitada no ano seguinte, mencionando a falta de reconhecimento local, pela Prefeitura, e nacional, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

A decisão de revogar o tombamento e de demolir, para Marcelo, beneficia interesses privados. "Isso bate de frente com esse interesse pela preservação dos bens, que é um interesse coletivo, onde o município deveria estar se pautando", diz. Após a demolição, o futuro do terreno é incerto e dependerá da vontade dos proprietários.

"A gente deveria aproveitar essa oportunidade para estabelecer outro tipo de compromisso entre o desenvolvimento e a preservação, que para mim são duas faces da mesma moeda. Do jeito que a coisa está caminhando aqui em Fortaleza, todos esses elementos que compõem a memória da cidade estão desaparecendo e quem perde com isso é a própria cidade", afirma Romeu Duarte, arquiteto que assina a instrução de tombamento do bem. (Colaborou Wilnan Custódio / Especial para O POVO)

Leia mais em Vertical, página 2; Política, página 6; Érico Firmo, 9; Editorial, 18

Exemplos de manutenção de patrimônio no CE

Nem precisa ir muito longe para ver exemplos de cidades que conseguem manter a manutenção de seu patrimônio histórico. "Aracati, Icó, Sobral, Viçosa [do Ceará]...", cita o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Laboratório de Reabilitação e Sustentabilidade das Construções (Lareb), Esequiel Fernandes. Essa manutenção, conforme o docente, significa trabalho prévio de reforço, restaurações e monitoramentos, pontos fundamentais para manter a vida útil de qualquer edificação. 

"As construções têm uma vida útil de projeto. Quando você projeta uma construção, que dure 50 anos, claro que é preciso manutenções, intervenções. Danos se ampliam, situações ficam mais dramáticas", destaca. É assim que edifícios que têm 50 ou 60 anos conseguem sobreviver. O professor destaca: "Se tivesse sido reabilitado há uns 30 anos, esse cenário de risco seria evitado". 

Esequiel lembra quando, em 2017, o Núcleo de Tecnologia e Qualidade Industrial do Ceará (Nutec) fez uma avaliação no edifício São Pedro. O grupo de pesquisa é especializado em materiais de construção e, segundo ele, o laudo se restringe aos elementos de concreto. "Inclusive, o laudo tem falando que eles não fazem avaliação cultural", frisa.

O conhecimento sobre o peso do patrimônio cultural só surgiu entre as disciplinas do curso de Engenharia nos últimos cinco anos, de acordo com Esequiel. "O pedindo de tombamento não foi aceito, com isso, não existe política de proteção. Apesar de a população achar o prédio um patrimônio edificado, não tem lei para isso. É um cenário dramático". (Alexia Vieira e Sara Oliveira)

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