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Núcleo Colonial Pio XII: impactos da imigração japonesa no Ceará
Reportagem

Núcleo Colonial Pio XII: impactos da imigração japonesa no Ceará

Criado pelo presidente Juscelino Kubitschek, espaço é considerado primeiro assentamento da reforma agrária do Ceará
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Japoneses que residiam no núcleo, durante uma das reuniões que realizavam  (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Japoneses que residiam no núcleo, durante uma das reuniões que realizavam

Na madrugada do dia 16 de maio de 1960 chegavam a Guaiúba, distante 39,2 km de Fortaleza, nove famílias japonesas. Carregando bagagens nas mãos e expressões de cansaço nos rostos, os nipônicos vieram para integrar o Núcleo Colonial Pio XII, pioneiro em reforma agrária no Ceará e com mais de 60 anos de história. A imigração no local trouxe impacto, principalmente, na alimentação do cearense.

Hoje chamado de distrito de São Jerônimo, o espaço foi criado pelo, à época presidente, Juscelino Kubitschek (1902-1976), em 31 de outubro de 1958. O nome inicial foi dado em homenagem ao papa Pio XII (1976-1958), uma figura de importante peso internacional e que havia falecido em outubro de 1958.  

Tal história é documentada no livro "Núcleo Colonial Pio XII: um resgate histórico da primeira reforma agrária do Estado do Ceará", de autoria do historiador Rafael Rosário. De acordo com pesquisa feita pelo cearense, a cidade de Guaiúba inicialmente era chamada de sítio São Gerônimo de Francisco da Cunha Freire e pertenceu a personalidades cearenses, como o professor e político Manuel Leiria de Andrade (1889-1935).

Em 1958 o sítio foi vendido para o Governo Federal, marcando a primeira reforma agrária do Estado do Ceará. A venda foi fruto do encontro dos bispos que ocorreu em Campina Grande, na Paraíba, e que contou com a presença do presidente Juscelino Kubitschek. Na ocasião, foram aprovados vários decretos  em busca de melhorias para o Nordeste, e um desses documentos criou o núcleo na cidade cearense. 

Criação do espaço territorial tinha dentre objetivos evitar a migração do nordestino e fixá-lo ao solo local. De acordo com o historiador Rafael Rosário, 44 famílias vieram de diversos locais para morar em Guaiúba. Nove delas eram de imigrantes japoneses das cidades de Nagano e Hiroshima.

Os nipônicos chegavam do outro lado do mundo para ensinar técnicas agrícolas aos colonos cearenses, uma vez que a mão de obra japonesa era mais especializada do que a brasileira. A junção de culturas e procedimentos deveria impulsionar o abastecimento do mercado central cearense de produtos hortifrutigranjeiros.

Segundo o livro escrito por Rosário, Shinzo Ohama, um dos coordenadores da imigração japonesa e responsável pela adaptação de imigrantes no núcleo, cita que os imigrantes trouxeram sementes e enraizaram novas culturas como a do melão japonês e a da melancia redonda. Além disso, nipônicos introduziram a alimentação de legumes à mesa do cearense. 

A chegada dos imigrantes ao Núcleo Colonial Pio XII foi documentada em jornais do Estado. A edição impressa do O POVO de maio de 1960 traz uma reportagem remontando o da chegada das famílias japonesas a Guaiúba. Eram 49 nove pessoas ao todo, segundo O POVO.

"Sorridentes e demonstrando grande cansaço, trazendo bagagem numerosa e filhos de todos os tamanhos, chegaram quase à meia-noite de ontem a Guaiúba as nove famílias de colonos japoneses (...) Que vão amanhar à terra e plantar quase que exclusivamente hortaliças e legumes no Núcleo Pio XII do INIC para reforçar o abastecimento de Fortaleza", diz trecho da publicação.

Entre as famílias nipônicas que chegavam naquele dia estava a de Ichiro Fujiwara. Junto aos demais colonos japoneses, ele veio de trem e ficou inicialmente em um galpão. Depois, houve uma divisão de terras no núcleo e a parentela se acomodou trazendo roupas e maquinarias, dentre outras coisas.

Quem conta a história é Carlinha Santos, 36, neta de Ichiro. "O primeiro pedaço de terra tinha uma casinha pequena, com o tempo meu tios e avós foram conseguindo construir", diz a analista de sistemas, narrando uma memória passada entre as gerações.

Conforme ela, um dos choques culturais mais sentidos pela família foi em relação à alimentação, pois no Japão eles tinham o costume de comer muitos legumes — e aqui no Brasil conseguiam se alimentar apenas de "coisas semelhantes". Nas terras cearenses, os parentes iniciaram o plantio de melancia, de melão e construíram uma granja por meio da qual conseguiram se manter financeiramente.

A construção desse tipo de propriedade, inclusive, virou uma prática comum entre os colonos japoneses. Carlinha, que cresceu no núcleo, lembra de uma infância de brincadeiras por entre as granjas ao lado dos filhos e netos de outros colonos japoneses, que passaram a ser parte de uma só família.

"A gente podia andar à noite, tranquilamente, não tinha questão de violência, a gente se diz primos uns dos outros (...) A gente cresceu todo mundo junto", pontua. A analista de sistemas saiu da propriedade quando tinha 12 anos, mas voltou há cerca de quatro anos e pretende ficar por lá.

"Uma coisa que a gente tem aqui é que a gente tem o nosso lugar. [Não precisamos] Mudar. [Não vamos] Vender", destaca, sobre a possibilidade de a família sair da terra que foi regada e cultivada por gerações.

De acordo com o historiador Rafael Rosário, a familia Fujiwara é uma das três que ainda residem no Distrito São Jerônimo (antigo Núcleo Colonial Pio XII). As demais são os Okura e os Tsuchiya.

Encontro com as origens

Na família Okura, uma de suas integrantes fez o caminho contrário ao de seus antepassados. Nascida e criada em São Jerônimo, Ariane Nascimento Okura, 33, conta que o avô veio morar no Núcleo Colonial Pio XII durante a década de 1960 após ouvir que lá ele teria "muitas terras e água para plantar".

Vivendo no período pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em que o Japão saiu como um dos derrotados e viveu intensos impactos sociais e econômicos, as palavras pareciam uma promessa de tempos de paz. Ele ganhou do governo brasileiro terras no núcleo em Guaiúba e por lá teve filhos, criou porcos, galinhas e plantou mamão, hortaliças e melão.

Os pais de Ariane continuam morando no local, hoje chamado de distrito São Jerônimo, cultivando a terra. Ela, contudo, tomou um rumo diferente. Enquanto crescia no município cearense, a dona de casa alimentava um desejo sempre que ouvia as histórias sobre a longínqua nação japonesa.

"Sempre quis vir desde criança [para o Japão]. Quando comecei a entender e ver fotos do meu pai e avô aqui, cresci com isso na minha cabeça, que um dia iria conhecer o local de origem dos meus antepassados", conta. Ela foi embora de Guaiúba em 2017 e mora até hoje no país nipônico.

Resquícios da aventura nipônica no Ceará

Além do plantio, o avô de Ariane Nascimento também deixou sua marca como uma das pessoas que ajudaram na construção, em Fortaleza, da igreja Tenrikyo. A religião monoteísta japonesa, cujo nome significa "Ensinamento da Verdade Divina", que prega principalmente a vida plena de alegria e felicidade.

"No Japão eles têm tipo um altar dentro de casa que eles agradecem e oferecem alimentos aos deuses e entes queridos que já se foram. Eu lembro vagamente de estar com meu avô cantando. Eles mantiveram os costumes deles, adaptaram as coisas que eles tinham no Brasil", relembra a dona de casa.

Na capital cearense, a igreja foi inicialmente conduzida por Shinzo Ohama e atualmente é comandada pelo filho dele, Akira Dal Ohama. De acordo com o líder religioso, a unidade ficou muito tempo fechada e perdeu metade do público após a pandemia— recebendo hoje cerca de 16 pessoas apenas.

Ainda conforme o representante religioso, um dos grandes sonhos de seu pai, Shinzo Ohama, era integrar os colonos à sociedade, "tendo em vista a característica japonesa de se fechar". Contudo, a "colônia acabou se perdendo com a não continuidade das tradições por parte dos descendentes".

"Muitos foram para o Japão, como 'Dekasseguis' (trabalhadores temporários estrangeiros no Japão), em busca de oportunidades (...) Não temos mais seguidores (na igreja) descendentes de imigrantes, a não ser eu e meus irmãos. Hoje, todos os seguidores são brasileiros não descendentes", conta o líder religioso.

"O grande legado do reverendo Shinzo Ohama está na inclusão de brasileiros nos ensinamentos da Tenrikyo. As Cerimônias são todas em japonês, com muitos aspectos culturais japoneses. Mas os ensinamentos são universais. Os orientais têm uma forma diferente de encarar a vida. E esse princípio vem da espiritualidade, ou seja, das filosofias e sabedorias religiosas. Trazer e fazer uma releitura de acordo com as circunstâncias ocidentais, é que é o grande legado do meu pai", completa.

Além da igreja, outro equipamento da Cidade que existe como forma de lembrar e integrar os cearenses com a cultural oriental é o Jardim Japônes. Inaugurado em 2011, espaço foi criado em homenagem a Jusaku Fujita, o primeiro imigrante japonês que chegou ao Ceará, em 1923.

Para o historiador Rafael Rosário, contudo, a contribuição dos japoneses para Guaiúba e para o Estado deveria ser mais reforçada por órgãos públicos, visto a importância e o impacto que teve na história cearense. "Esse fato histórico [imigraçaõ japonesa] representa uma grandeza histórica mundial e poderia ser melhor aproveitado. Por isso defendo muito a valorização da história local", destaca o pesquisador.

Segundo o Censo Populacional 2022, 11.256 moradores do Ceará se consideram pessoas amarelas, o que equivale a 0,1% da população. As cidades com maior proporção são Madalena (0,56%), com 94 pessoas; Groaíras (0,47%) e Forquilha (0,44%).

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