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Elas"botam banca":o dia a dia das mulheres feirantes
Reportagem

Elas"botam banca":o dia a dia das mulheres feirantes

Histórias como as de Vera, Marylene, Andréia e Fernanda revelam as dificuldades e a determinação das mulheres que fazem das feiras livres seu sustento
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Frutas, verduras, roupas, ferramentas, animais. Feira-livre tem de tudo (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Frutas, verduras, roupas, ferramentas, animais. Feira-livre tem de tudo

A cada novo dia, barracas coloridas e a agitação das feiras livres tomam conta de cerca de 80 pontos de Fortaleza. É uma comunidade de mais de 3 mil vendedores registrados. Um trabalho honesto, movimentado e com muitos desafios próprios. Mais ainda nascem no cotidiano das mulheres feirantes, que não apenas lidam com as demandas físicas do ofício e com a necessidade de uma boa comunicação, como convivem com o peso de assédios e o fardo das duplas jornadas.

Essa realidade é e foi vivido por dona Vera que, perto de completar 30 anos como feirante, completa o itinerário na Messejana aos domingos: “Domingo aqui e sábado na feira do São Cristóvão. Fazia a (feira do Parque) Santa Maria (no bairro Bom Jardim), mas lá ficou muito violento, aí fiquei só nessas duas. Comecei aqui vendendo água de saquinho de 10 centavos, vendia chá, vendia café, depois passei para din-din, milho, aí comecei com churrasco, depois bebida, depois comida, e aí foi crescendo”.

Hoje a barraca funciona como um restaurante ao ar livre onde ela serve, além de bebidas, pratos como panelada, sarrabulho, carneiro, porco cozido, bife ao molho, estrogonofe e peixe torrado.

— Que horas a senhora acorda para preparar tudo isso?

— Eu nem durmo, não. Eu faço as carnes e os caldos à noite, uma da manhã faço arroz, cuscuz, café, chá. Três (da madrugada) chego por aqui e começo a montar as coisas.

Em meio ao alaranjado característico que reflete das lonas usadas para cobrir a estrutura das barracas, uma cor se destaca. É a de Marylene Oliveira, a feirante da barraca cor-de-rosa. “Espia, até as caixa da mulher é rosa”, repara uma consumidora de passagem.

“Hoje em dia você pode ver que tem em outras barracas, mas quem começou fui eu. Eu comecei com os pratos, depois veio as caixas, aí de repente eu encontrei a sacola rosa. Aí coloquei cabelo rosa, adereço rosa, roupa rosa. Hoje em dia meu guarda-roupa é 50% rosa”, relata.

Mary, como grafado nos caixotes personalizados para ninguém “surrupiar”, começou com uma barraca e hoje já administra três — tudo sozinha. Abastece na Ceasa e comercializa nas feiras dos bairros Tancredo Neves, Serrinha, São Cristóvão e Messejana há 4 anos, desde que ficou viúva.

“Eu estava em depressão e uma amiga da minha mãe me chamou pra fazer os fretes dela, aí comecei a me interessar. Só que chegou a pandemia e começou a parar. Aí comecei a entender como funcionava a Ceasa e comecei a trabalhar pra mim. Me mudei para o José Walter só pra facilitar o deslocamento, tanto pra Ceasa quanto pras feiras”, revela.

É uma luta diária que, para ela, por ser mulher, se torna mais complicada: “Eu sempre tenho a sensação de que estou só. Carrego e descarrego tudo só. Muito homem mexe comigo, principalmente porque vê que eu tô só. Mas nem ligo mais. Eu parei de trabalhar com bebida (alcoólica) porque tinha muito assédio. Em qualquer lugar do mundo você é assediada, imagina nas vendas. Eu tenho passado por situações que se fosse em outro momento eu já teria desistido”.

A feira, como demonstra Mary, não é um ambiente muito receptivo para as mulheres — para não dizer que lhes é hostil. A maioria delas, sejam feirantes ou consumidoras, é tratada como mais um item à venda — e atravessada por olhares invasivos ou comentários desagradáveis, por vezes assediadores.

Enquanto conversa justamente sobre as situações de assédio com as quais se depara no dia a dia como feirante, Mary é interrompida por um rapaz que passa: “Eu tenho água e tenho ovo grande, hein? Ô, morena, cê vai querer meu ovo?”, num trocadilho com o produto que vende. “Eu não”, responde ela, prontamente. “Viu aí, né? E, antes, eu dava só uma risadinha sem graça. Hoje, eu já rebato”, revela.

Realidade que também faz parte do cotidiano de Virgínia, 53, Fernanda, 31, e Ana Luiza, 16: três feirantes, três gerações de mulheres da mesma família.

Durante o tempo em que dona Virgínia e a jovem Ana Luiza se dividem para servir e atender aos clientes da banca de comida, Fernanda cuida da barraca vizinha e ajuda com os pagamentos.

“Criei minhas filhas na feira”, aponta dona Virgínia, entre um vai-e-vem e outro.

Fernanda continua: “Ela começou vendendo café, quando a feira ainda era lá em cima, depois passou para cá, no terminal, começou uma barraquinha pequena. Veio e foi várias vezes, mudança direto. Eu vinha pequena acompanhando”.

Ela seguiu os passos da mãe e cedo engravidou de Ana Luiza, que hoje auxilia a avó. “Não tinha com quem deixar, cresceram na feira também. Minha filha foi no mesmo caminho, já tem uma neném de 1 ano e 4 meses. Ainda não dá pra trazer pra feira porque não tem quem olhe”, comenta.

“Eu amo a feira, cresci no movimento, não tem como. É difícil, meio perigoso, muito homem confunde, você tá sendo simpática e eles acham que você tá dando liberdade. Já aconteceu muito de vender e a pessoa não querer pagar, e é uma raridade passar policial aqui. Mas é isso”, atesta.

Apesar dos desafios, ela criou os filhos

A rotina de uma feirante começa antes do nascer do sol. Na Feira das Goiabeiras, localizada na Barra do Ceará, as bancas de frutas e verduras, além de vestimentas e ferramentas para uso doméstico, já estão prontas para a venda por volta das 6h30min de cada sábado.

Muito antes disso, a feirante Andreia Bezerra de Sousa já está em atividade em casa para aprontar as mercadorias compradas pelo marido na Ceasa e levar à feira. Ela é uma das veteranas nas Goiabeiras, comercializando frutas no local há 17 anos.

A comerciante explica que a trajetória para melhorar a vida da família com a renda adquirida das vendas a céu aberto foi árdua. “Antes eu era ambulante. Com um carrinho de mão eu ia vendendo fruta no meio da rua e também ia de casa em casa”, conta.

Posteriormente conseguiu, junto do esposo, montar bancas em diferentes feiras de Fortaleza - como as do Jardim Iracema, Álvaro Weyne, além das Goiabeiras. Nesse meio tempo, o casal teve cinco filhos.

“Hoje, graças a Deus, já ‘tão’ tudo criado. Mas no começo era muito difícil. Na época de começo de ano, eu saía de madrugada para pegar vaga nas creches”, conta a mãe e vendedora.

 

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL 20-04-2024: Feira dass Goiabeiras. (Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL 20-04-2024: Feira dass Goiabeiras. (Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo) Crédito: Yuri Allen/Especial para O Povo

“Para trabalhar, eu deixava eles o mais cedo possível na escola e saia pra vender. Pegava eles no final do dia e, de madrugada, já tava de pé pra começar a aprontar as coisa tudo de novo”, diz Andréia.

O diálogo com Andréia ocorre em ritmo frenético, logo chega um cliente questionando o preço dos limões e, memorizado como o próprio nome, ela esclarece que é R$5 a bacia.

- Mas não é daqueles secos não, né? Que só tem tamanho mas não tem suco? - questiona o moço.

- Esses aqui mesmo não - diz a vendedora e, para comprovar a fala, ali mesmo corta e espreme uma das frutas - Aqui é o limão ‘Cagece’, igual uma cano de água quando quebra.

Rindo enquanto o sumo do limão cortado jorra ao chão, o cliente afirma querer uma bacia dos produtos - contendo em torno de dez limões. “Vou levar só por causa da vendedora”, conta enquanto paga.

Questiono a Andreia como ela enxerga a profissão de feirante para as mulheres. Segundo ela, há alguns anos, a feira era dominada por vendedores homens. “Mas hoje é mais mulher, pode olhar em volta”, ela aponta ao redor.

“Querendo ou não a feira é um trabalho pesado, começa a trabalhar cedo e pega muito peso. Mas a gente dá conta. O que é mais estressante é mesmo o tratamento de alguns clientes. Tem muito homem enxerido que leva na maldade um bom atendimento. Por isso a gente não pode dar cabimento. Eu finjo que nem escuto”, diz.

Uma luta por independência financeira

Se Andréia é símbolo de experiência como feirante, há apenas poucos metros da banca da vendedora encontramos Fernanda de Souza, que atua há pouco menos de dois anos na profissão.

A pouca experiência não resulta em falta de profissionalismo. Com um sorriso no rosto e a típica argumentação de vendedora, não faltam clientes na banca de frutas em que a moça divide os atendimentos com o tio. Ela nos conta, inclusive, que a profissão feirante tem sido uma tradição de gerações.

“A minha mãe também é, então praticamente cresci vendo essa rotina”, diz. Fernanda nos conta, no entanto, que sua intenção inicial não era seguir os passos dos outros membros da família.

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“Eu sou formada como técnica de enfermagem, trabalhava em hospital. Mas aí eu engravidei e, depois de ter meu filho, deixei de exercer. Quando achei que poderia voltar a trabalhar, não encontrei nada na minha área”, ela relata.

Para ajudar nos gastos familiares, ela recorreu às feiras. “Eu antes trabalhava só aos sábados e domingos, pq meu filho ainda era novinho. Hoje que ele está maior, fico durante a semana também. Faço cinco feiras: terça no Jardim Iracema; quinta no Álvaro Weyne; sexta no Quintino Cunha; sábado aqui e domingo no Antônio Bezerra”, detalha.

Fernanda pontua outro fator decisivo para voltar ao mercado de trabalho, mesmo que não seja em sua área de formação. “Nós que somos mulheres, mesmo que nossos maridos sustentem a casa, gostamos de ter nosso próprio dinheiro, para não ficar dependente deles”, esclarece.

Apesar da vida de feirante não ter sido um projeto de vida para Fernanda de Sousa, ela se mostra grata pela atual rotina. “Amo trabalhar em ambiente aberto, onde eu posso conversar com as pessoas. A gente sabe tratar o cliente, conversar e ganhar amizade e a fidelidade”, pontua.

Como para provar a fala, Fernanda se ilumina com a chegada de uma cliente. Acariciando a barriga, a moça grávida que chega compra algumas frutas da comerciante, que ao fim da interação exclama: “Pois apareça viu, quando ele nascer. Dou mó valor cheirar cangote de neném".

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