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Os riscos que a ciência prevê para o litoral do Ceará
Reportagem

Os riscos que a ciência prevê para o litoral do Ceará

| Pesquisas | Estudo geológico da UFC aponta que metade da costa cearense deve perder pelo menos 10 metros de areia em 16 anos. Já a ONG Climate Central olha para 2100, quando o Estado pode ter de enfrentar inundações
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ESPIGÃO da Leste, no Pirambu, ajuda a conter avanço do mar em Fortaleza (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal ESPIGÃO da Leste, no Pirambu, ajuda a conter avanço do mar em Fortaleza

Em dezesseis anos, metade (49,16%) da costa cearense — cuja extensão é de 573 quilômetros — pode perder pelo menos 10 metros de faixa de areia. Isso é o que revela estudo preditivo da linha costeira cearense desenvolvido no Departamento de Geologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Fortim, no Litoral leste, deverá ser o município mais atingido pela erosão. O estudo indica que os municípios de Icapuí, Cascavel, Caucaia, Paracuru, Paraipaba, Trairi, Amontada, Itarema, Acaraú e Camocim também devem sofrer com intensas erosões até 2030.

A tendência de avanço do mar se acentua na Costa Oeste do Estado no período até 2024. Isso deve acontecer desde o setor de Fortaleza, que inclui a Capital e os municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante, aos setores da Costa Oeste, com Trairi e Itapipoca, e Extremo Oeste, alcançando Amontada, Itarema, Acaraú, Cruz e Camocim.

A erosão costeira é um processo em que as áreas litorâneas apresentam a remoção de sedimentos devido à ação de forças naturais como ondas, marés, correntes e ventos. É o que explica Narelle Maia de Almeida, professora do Departamento de Geologia da UFC e uma das autoras do estudo.

O processo erosivo é natural, mas pode ser intensificado e/ou acelerado por processos antrópicos — isto é, ocasionado pelo homem. Segundo ela, ambos os cenários foram identificados no Ceará.

“Este fenômeno também pode ser influenciado por fatores humanos, como por exemplo, a construção de estruturas costeiras, uso e ocupação do solo, barragens fluviais, extração de areia e mudanças climáticas”, completa.

Foram identificados cenários de erosão severa claramente causados por interferência antrópica, destaca a professora. Ela destaca a praia do Icaraí em Caucaia, que foi bastante erodida devido aos molhes do Porto do Mucuripe e os espigões de Fortaleza, os quais impedem o transporte natural dos sedimentos (deriva litorânea) e o abastecimento sedimentar.

Avanço do mar deve ser mais intenso em Fortim, localizado a cerca de 130 quilômetros de Fortaleza, prevê o estudo. O município pode ter perdido 318 metros de costa entre entre o ano de 2020, usado como base, e 2023. De 2020 a 2040, serão 436 metros perdidos pela erosão.

Mais estudos, proteção e manejo sustentável

A professora Narelle ressalta que a zona costeira do Ceará desempenha um papel crucial em diversos aspectos. Além da diversidade de ecossistemas e da identidade cultural ligada ao mar e à pesca, ela frisa que a atividade pesqueira e a aquicultura são cruciais para a economia local, bem como o turismo costeiro.

“Processos erosivos acentuados podem prejudicar demasiadamente esta região de grande importância econômica, ambiental, social e cultural, que desempenha um papel vital na sustentabilidade e no bem-estar das comunidades locais e na biodiversidade costeira”, diz.

A partir dos resultados obtidos, o geólogo Luiz Henrique Joca Leite, também autor do estudo, alerta que é preciso considerar “mais variáveis na modelagem preditiva que interferem na dinâmica costeira”. A exemplo da velocidade dos ventos, pluviosidade, ação das ondas, marés, correntes, eventos de tempestades, elevação do nível do mar e ação antrópica.

“Além disso, sugere-se estudos mais aprofundados e em escala de detalhe voltados aos hotspots erosivos e aos ambientes costeiros de natureza complexa (exemplo estuários, spits arenosos e pontas litorâneas)”, salienta.

“É fundamental garantir a proteção e o manejo sustentável dessa região para as gerações presentes e futuras. Recomenda-se o uso de medidas e soluções baseadas na natureza de forma que a predição apresentada nesta pesquisa não venha a se tornar a realidade do ambiente costeiro do estado do Ceará”, defende a pesquisadora.

Entenda metodologia do estudo que fez predições

O estudo é resultado do trabalho de conclusão de curso (TCC) em Geologia de Luiz Henrique Joca Leite, sob orientação de Narelle. Ele pormenoriza que reuniu um banco de dados de imagens de satélite da linha de costa do Ceará do período de 1984 a 2020, obtidas através do repositório EarthExplorer, disponibilizado pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS).

Em seguida, o posicionamento das linhas de costa foi extraído das imagens de satélite “utilizando técnicas de aprendizado de máquina, criando uma linha de base para cada ano”.

Outra fase do estudo foi a análise de mudança da linha de costa. “Se analisa a série histórica de linhas de base adquirida para o período escolhido e, através de técnicas de modelagem estatística, são calculadas as taxas de mudança ao longo do tempo”, detalha o pesquisador.

Por fim, a etapa de modelagem e predição. Com base nas mudanças identificadas na linha de costa do Ceará ao longo do tempo, “o software utiliza métodos de modelagem estatística para calcular a posição futura da linha de costa”.

Conforme Joca Leite, as estimativas são feitas com base em tendências históricas de mudança e podem ser usadas para planejar medidas de gestão costeira e adaptação.

Entre 1984 e 2020, também foram verificados os processos de acresção, que é quando há avanço em direção ao mar, e equilíbrio, quando não existem variações significativas. A média anual é de 38,28% da costa com erosão, 13,73% passaram por um processo de acresção e os 47,98% restantes se mantiveram em equilíbrio. (Com Agência UFC)

 

Mudanças climáticas aumentam risco de inudanções no litoral do Ceará

Apesar de toda a área costeira do Ceará ter esses riscos, os municípios de Camocim e Acaraú, no Litoral Oeste, apresentam maiores áreas ameaçadas, aponta previsão de ONG americana

O litoral do Ceará, incluindo parte da área costeira de Fortaleza, pode sofrer inundações em 2100 decorrentes do aumento do nível do mar. A estimativa é resultado de uma pesquisa da ONG americana Climate Central, que analisa os impactos das mudanças climáticas no mundo.

Na média global, o nível do mar subiu 9 centímetros nos últimos 30 anos e, ao final do século, o índice pode chegar a 80 cm. Com isso, somente no Brasil, cerca de 2 milhões de pessoas podem ser afetadas nos próximos anos.

Um mapa criado pela ONG mostra as áreas afetadas de cada município no Brasil caso o mar avance entre 1 e 10 metros acima do nível da maré. Apesar de toda a área costeira do Ceará apresentar risco de inundações, destacam-se os municípios de Camocim e Acaraú, no Litoral Oeste. Além das praias, o risco para inundações nas cidades também se estendem até regiões de espelhos d'água costeiros influenciados pelas marés, como os rio Acaraú e Aracatimirim.

Confira as projeções do Ceará:

Já no litoral de Fortaleza e Região Metropolitana, os pontos vermelhos também mostram regiões em risco de inundação. A maior área de risco, contudo, está ao redor do rio Ceará, próximo à praia de Iparana, em Caucaia, e do bairro Vila Velha, na Capital.

As inundações também podem ocorrer próximas ao rio Cocó, que se estende quase até o Centro de Fortaleza. O rio Pacoti, um dos maiores da Região Metropolitana e que deságua no limite de Fortaleza com Aquiraz, também pode ter o nível aumentado.

Há também probabilidade de inundações nas proximidades das fozes dos rio Pirangi e Jaguaribe, na divisa entre Beberibe e Fortim, no Litoral Leste.

De acordo com Paulo Sousa, doutor em Oceanografia e professor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar), da Universidade Federal do Ceará (UFC), o aumento no nível do mar é uma das consequências do efeito estufa, causado pelos gases tóxicos jogados na atmosfera terrestre, principalmente da queima de combustíveis fósseis

“Quando os raios solares incidem no planeta, parte dessa energia é absorvida e parte é refletida novamente para o espaço. Porém, os gases de efeito estufa impedem que essa parte refletida saia do planeta, aumentando a temperatura do globo. Isso faz, por exemplo, com que as calotas polares derretam, levando a diversas alterações climáticas, como o aumento do nível do mar”, comenta o professor.

De acordo com o pesquisador, alguns eventos energéticos vão se tornar cada vez mais comuns e intensos. Inclusive, já podem ser sentidos. “As frentes frias, que geram as ressacas do mar, comuns no Nordeste e que causam inundações costeiras, vão se tornar mais frequentes. No início do ano, inclusive, houve uma ressaca que afetou a Praia de Iracema”, aponta Paulo Sousa.

Além da emissão de poluentes, o aumento do nível do mar também está ligado ao desenvolvimento de infraestruturas urbanas na orla costeira, área limitada e altamente valorizada financeiramente.

Isso porque os ecossistemas costeiros, como manguezais, dunas, praias e falésias, podem atuar como barreiras naturais contra a elevação do nível do mar e as inundações marinhas. No entanto, essa proteção natural vem sendo degradada há décadas.

Em 2021, a Climate Central já havia divulgado estudo que estimava uma inundação de Fortaleza nas próximas décadas. A organização projetou que a região do Farol do Mucuripe estaria completamente submersa caso a temperatura global aumentasse, na pior das hipóteses, em 3° C. A ONU alerta que, sem redução nas emissões, poderemos superar os aumentos de temperatura de 1,5°C e 2°C ainda neste século.

Aumento do nível do mar é uma situação global

Conforme aponta José Roberto Bairão Leite, pesquisador do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), a elevação do nível do mar é um fenômeno que vai além de Fortaleza.

“Essa é uma tendência nacional. Nossos registros, que correspondem à região de São Paulo, revelam um aumento médio de 4,2 mm por ano. Parece pouco, mas ao longo de 50 anos, isso representa aproximadamente 20 cm de elevação vertical. Acontece que alguns centímetros na vertical podem corresponder muitos metros de avanço na horizontal orla”, comenta.

Conforme a pesquisa, o Brasil está em 17º lugar no ranking de países com maior probabilidade de sofrer graves inundações devido ao aumento do nível do mar causado pela crise climática.

Os países que lideram essa lista são, principalmente, da Ásia, como China, Índia, Indonésia e Vietnã. A Climate Central aponta que são nações potência na indústria de energia a carvão, que emite gases altamente poluentes, e têm grandes populações vivendo em áreas abaixo das linhas de maré alta projetadas. No mundo todo, cerca de 800 milhões de pessoas podem ser afetadas.

“Esses eventos podem causar perdas econômicas. Além disso, toda nossa infraestrutura costeira foi construída considerando condições passadas. Até mesmo as estradas podem ser danificadas, dificultando o transporte e a vida cotidiana”, ressalta o pesquisador José Roberto .

Medidas de Contenção

Atualmente, ações globais buscam reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Um deles é o Acordo de Paris, que determina que os países desenvolvidos deverão investir 100 bilhões de dólares por ano em medidas de combate à mudança do clima.

O professor de Oceanografia da UFC, Paulo Sousa, discute que, localmente, os estados e municípios podem colaborar com políticas públicas e ações que promovam o uso de energias renováveis e adaptação para evitar a queima de combustíveis fósseis. “Mas é complicado falar em reversão. O que podemos fazer são adaptações, como realizar estudos para entender melhor os processos costeiros e implementar políticas públicas que levem em consideração essas mudanças”, diz.

O especialista, no entanto, critica a falta de monitoramento local do nível do mar. “Não temos um monitoramento constante das características oceanográficas e costeiras no Ceará, ou no Brasil como um todo. Isso é crucial para entender a extensão dos impactos e trabalhar com dados confiáveis para diagnósticos e proteções mais eficazes”, conclui.

Uma das medidas adotadas por Fortaleza é o Plano Local de Ação Climática (Plac), que estabelece metas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e alcançar a neutralidade de carbono até 2050. Já para a contenção de enchentes, a Prefeitura informou que está investindo em infraestrutura resiliente, “com a construção de reservatórios de controle de cheias e a implementação de jardins de chuva, que ajudam a mitigar inundações”.

Já pela gestão estadual, foi realizada no último mês de junho uma expedição com objetivo mapear os impactos costeiros, especialmente aqueles associados à erosão costeira.

“O motivo é a entrega de um novo produto ao Governo do Ceará até o final do ano, que está em fase de finalização. Este plano traz um diagnóstico da situação do litoral do estado do Ceará e inclui um fluxograma de ações importantes para as áreas afetadas pela erosão costeira ou pelo avanço do mar sobre os equipamentos urbanos”, explica o professor da Universidade Estadual do Ceará e integrante do programa Cientista Chefe, Davis de Paula.

 

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