Permeadas por acusações de interferência e declarações polêmicas, a Venezuela realiza eleições presidenciais no próximo dia 28 de julho. O pleito ganhou projeção global ao longo de todo o processo, com um escalonamento de ânimos nesta reta final, inclusive com o Brasil
Além da troca de acusações por parte do governo, dos opositores e comentários de líderes internacionais, a disputa gera dúvidas sobre a chance de o chavismo do presidente Nicolás Maduro (PSUV) ser derrotado nas urnas, sobre a confiabilidade do processo eleitoral e ainda se o regime aceitará um eventual resultado adverso. Enquanto não são poucas as apostas, entre adversários e aliados, de que as chances de derrota do atual presidente são improváveis.
Maduro comanda a Venezuela desde 2013, mantendo-se no poder ininterruptamente mesmo em meio a cenários de crise econômica e política. Agora, tenta um terceiro mandato. Além dele, outros nove candidatos inscreveram-se para a disputa, sendo o maior nome da oposição o ex-diplomata Edmundo González Urrutia (MUD), que representa María Corina Machado, líder anti-chavista da coalizão Plataforma Unitária Democrática (PUD).
A participação da coalizão oposicionista já representa uma diferença em relação ao pleito anterior, que resultou na reeleição de Maduro. Realizadas em 2018, as eleições foram boicotadas pela oposição, que alegou não haver “condições justas” na disputa.
Com a proximidade do pleito, Maduro aumentou o tom das declarações. Ele chegou a dizer que pode haver "banho de sangue" e "guerra civil" caso ele não vença. O comentário repercutiu negativamente na comunidade global, incluindo comentários do presidente Lula, que se disse “assustado”. Maduro não voltou atrás e reforçou as declarações, dizendo ainda que os meios de comunicação internacionais o censuram e "manipulam" informações sobre sua campanha eleitoral, à qual o acesso é limitado.
Do lado da oposição, não faltam acusações de interferência. González Urrutia declarou que não acredita que o pleito seja justo, transparente e equitativo, apesar de crer que sairá vitorioso nas urnas. Já María Corina Machado demonstrou preocupação e exigiu fiscais em todos os centros de votação. "Não existe plano B", afirmou.
Especialistas ouvidos pelo O POVO comentaram sobre o fundamento destas acusações. O consultor e analista político Leonardo Bayma foi enfático e elencou a interferência do governo Maduro como “incontestável”. “Perseguição a opositores, desaparecimento de pessoas, perseguição a qualquer tipo de imprensa livre, um judiciário manipulado pelo sistema e o domínio pleno sobre a cúpula militar dão a tônica do ditador Maduro”, afirmou o doutorando em ciência política.
Em outra análise, a docente da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA), Jamile Tajra, considerou índices globais de “níveis democráticos” dos países, como o determinado no Varieties of Democracy (V-Dem Suécia). Os observatórios elencam a Venezuela como uma “autocracia eleitoral”, ou seja, mantém procedimentos democráticos como as eleições, mas com “contornos autoritários na dinâmica política do país.”
Quem é quem nas eleições venezuelanas?
Nicolás
Maduro:
Atual presidente, governa o país desde 2013. É herdeiro político de Hugo Chávez e do chavismo. Foi constituinte, deputado, chanceler e vice-presidente da Venezuela. Teve o governo marcado por crises econômicas. Entre 2014 e 2021, o País perdeu 69,24% de seu Produto Interno Bruto (PIB). A partir de 2021, a economia passou a se recuperar lentamente, provocada pela retomada da produção de petróleo e pela alta do consumo. Nos dois cenários: de crise e leve recuperação, Maduro seguiu intacto no poder. Neste ano, tenta o terceiro mandato.
Edmundo González
Urrutia:
Nunca havia concorrido a eleições. Trabalhou no Ministério das Relações Exteriores da Venezuela e foi embaixador do país na Argélia e na Argentina. Foi alçado como candidato da Plataforma Unitária Democrática (PUD) após duas candidaturas terem sido derrubadas. Primeiro, houve a inabilitação da favorita, María Corina Machado, e, após, o veto à primeira opção dela para substituí-la, Corina Yoris.
Maria
Corina
Machado:
Apesar de não concorrer diretamente às eleições, Machado é considerada o rosto da oposição venezuelana. Em 22 de outubro de 2023, venceu as eleições primárias para liderar a oposição venezuelana, com mais de 90% dos votos. Em janeiro de 2024, o Tribunal Supremo da Venezuela ratificou uma inabilitação de Machado, que não pode concorrer a cargos públicos pelo período de 15 anos.
Demais candidatos:
Apesar do foco em Maduro e González Urrutia/Corina Machado, outros oito concorrentes disputam a Presidência da Venezuela.
São eles: Luis Eduardo Martínez, Daniel Ceballos, Antonio Ecarri, Benjamín Rausseo, José Brito, Claudio Fermín, Javier Bertucci e Enrique Márquez.
Urrutia lamenta decisão do TSE
O principal candidato opositor nas eleições da Venezuela, o diplomata Edmundo González Urrutia, lamentou ontem a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de cancelar a missão diplomática ao país para observar as eleições após declarações do ditador Nicolás Maduro. Em uma entrevista coletiva transmitida pelo TikTok, Urrutia disse que a ausência do órgão é "um sinal ruim".
"Teríamos gostado de contar com a presença (do TSE), é um sinal ruim", declarou ao ser questionado sobre a decisão. Apesar disso o candidato expressou otimismo com a observação do processo eleitoral. "Contamos com a observação de milhões de venezuelanos em 28 de julho. Essa será a melhor observação, estarão muito atentos ao que irá acontecer neste dia e aos resultados."
González Urrutia também lamentou que o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) do país tenha desconvidado o ex-presidente argentino Alberto Fernández por declarações consideradas hostis pela ditadura venezuelana. Assim como Lula, Fernández disse que Maduro deve reconhecer o resultado eleitoral em caso de derrota.
O cancelamento da missão diplomática do Brasil foi tomada após Maduro afirmar durante um comício que as eleições no Brasil não são auditadas. "Em face de falsas declarações contra as urnas eletrônicas brasileiras, que, ao contrário do que afirmado por autoridades venezuelanas, são auditáveis e seguras, o Tribunal Superior Eleitoral não enviará técnicos para atender convite feito pela Comissão Nacional Eleitoral daquele país para acompanhar o pleito do próximo domingo", afirmou o tribunal em nota. (Agência Estado)
Opositores inabilitados
María Corina Machado, maior líder da oposição, a princípio, concorreria às eleições deste ano, mas foi inabilitada pelo Supremo Tribunal da Venezuela a ocupar cargos públicos por 15 anos. Em seguida, houve um veto à primeira opção para substituí-la, Corina Yoris, desta vez porque o grupo dela, 'Vente Venezuela', integrante da coligação de Machado, supostamente não estaria registrado como partido político e, portanto, não poderia lançá-la como candidata. González Urrutia acabou escolhido de última hora, mas a influência de Corina Machado segue na campanha.
Essas substituições, de Corina Machado por Corina Yoris e, após, por González, provocaram acusações de interferência do governo de Maduro no processo de escolha. A situação afetaria o acordo de Barbados, assinado em 2023, no qual a Venezuela se comprometeu com eleições transparentes.
A PUD alegou que as "medidas aplicadas pelo regime são ilegais", se referindo a obstáculos e ataques relacionados ao processo eleitoral, após "bloqueios" para a inscrição de candidaturas e a intervenção em partidos de oposição como o Primeiro Justiça (PJ).
O Departamento de Estado dos EUA condenou o impedimento à inscrição de candidaturas da oposição às eleições presidenciais na Venezuela, após a denúncia de bloqueio de Corina Yoris. O próprio Brasil pediu "ampla presença" de observadores em eleições na Venezuela, apesar de condenar sanções ao país.
A autoridade eleitoral da Venezuela, de viés governista, reagiu às críticas. Sobre os EUA, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) repudiou "de forma categórica os insolentes e falsos questionamentos do Departamento de Estado." Além disso, foi revogada a participação da União Europeia como observadora no pleito. "[As ações] correspondem à atitude hostil e desrespeitosa deste bloco contra a República Bolivariana da Venezuela", foi a justificativa.
O convite ao Brasil foi mantido. A princípio, o Tribunal Superior Eleitoral brasileiro (TSE) disse que não enviaria ninguém, o que foi revertido e, em seguida, voltado atrás, após as falas mais recentes do presidente Maduro, contra o processo eleitoral brasileiro.
Os próprios candidatos demonstram descrédito ou desconfiança na disputa eleitoral. O presidente Nicolás Maduro acusou dois candidatos presidenciais da oposição, Urrutia e Enrique Márquez, de tentarem aplicar golpe de Estado. O motivo teria sido a recusa de assinatura de um acordo para reconhecer os resultados do pleito, assinado por ele e pelos demais sete concorrentes em junho. (Ludmyla Barros/especial para O POVO)
Quais as reais chances do chavismo ser derrotado?
Nicolás Maduro é sucessor direto de Hugo Chávez. Ascendeu ao Executivo nacional com o afastamento do presidente eleito, por motivos de saúde. O líder venezuelano estava à frente do comando do País desde 1999 e morreu em 2013, um ano após deixar o cargo, vítima de um câncer.
De Chávez vem o chavismo, que, por sua vez, é influenciado pelo bolivarianismo, todos com variadas definições no meio da ciência política. Em termos gerais, o bolivarianismo foi utilizado por Hugo Chávez nos anos 1990, como uma forma de defesa de uma "nova República da Venezuela", associando o desejo de nacionalização à figura do líder político venezuelano do fim do século XVIII, Simon Bolívar.
Maduro é herdeiro deste chavismo, mas apresenta algumas diferenças, apontadas pelos especialistas. "Maduro se inspira e se apoia na figura carismática de Chávez e, sobretudo, na herança de seu ideário político, ou seja, em toda uma cultura política soberanista e de valorização de um ideal emancipatório para o país e para a Região (América Latina), aliada a uma postura de resistência à presença de potências externas, sobretudo a estadunidense", afirmou Jamile Tajra.
As hipóteses de uma possível queda do chavismo/madurismo foram intensificadas após o ingresso da oposição no pleito, ao passo que antes defendia a abstenção como "manifestação" anti-Maduro.
Segundo a professora Jamile Tajra essa força foi prejudicada pela falta de "um candidato forte e uma campanha eleitoral unificada, com um delineamento claro de enfrentamento ao chavismo/madurismo." "Isso, não tão somente por sua responsabilidade, pois houve e há empecilhos", acrescentou, se referindo às dificuldades de ingressão oficial no pleito eleitoral.
Para a cientista política, a situação também não teria unidade suficiente para abrir uma frente de ampla vantagem. "[Maduro] enfrenta crescentes demandas populares e das camadas médias por melhorias em suas condições de vida, precisando lidar com um vasto repertório de ressentimentos por parte de uma população cansada de tantas mazelas sociais e, em larga escala, desencantada com o chavismo/madurismo", afirmou. Segundo ela, as elites venezuelanas, especialmente as ligadas ao petróleo, também deverão pressionar pela manutenção de "suas posições de privilégio."
"Apesar de que em momentos de eleição deste porte, a Situação [grupo/partido no poder] tenha a 'vantagem' de mostrar sua obra e, por via da reeleição, propor a sua continuidade, no caso de Maduro, o caos social e a piora nos vários indicadores de desigualdades trabalham agora em seu desfavor", disse Tajra.
Leonardo Bayma também elenca empecilhos para essa mudança no governo venezuelano. Para ele, as eleições venezuelanas não indicam que o País é uma democracia e, assim, ele não as enxerga como um método de pôr fim ao regime de Maduro.
O que poderia ser feito, segundo Bayma, não parte de "uma receita de bolo". Uma ajuda poderia partir de agências multilaterais, através do envio de observadores para o pleito. "Também que governos realmente comprometidos com a democracia censurem e se manifestem contra o que vem ocorrendo na Venezuela. A mudança vem de dentro da sociedade venezuelana, mas o fator externo ajuda a construir a conjuntura da mudança verdadeiramente democrática", afirmou.