Envelhecer com dignidade, sob a proteção de uma família e dentro de um lar saudável. Em Fortaleza, o número de idosos que vive longe desse desejo tem crescido. A Capital registrou em 2024, via Escritório de Direitos Humanos, 1.720 denúncias de violências cometidas contra esse público— entre agressões físicas e aquelas cujas marcas não se podem ver. Número é 30.89% maior ao identificado em 2023, de 1.314.
Dados foram compilados e divulgados pela Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS). Segundo pasta, queixas identificadas no ano passado abrangem situações de abuso financeiro, psicológico, patrimonial, institucional, sexual, físico e cárcere privado.
Também ao longo de 2023, as seis Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) gerenciadas pelo Município realizaram 22 assistências a idosos vítimas de violência. Conforme a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), órgãos de proteção à vítima são acionados sempre que se identifica crimes do tipo.
Raphael Castelo Branco, presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDPI), aponta que a negligência e o abandono também são ações violentas cometidas contra pessoas acima de 60 anos, frisando ainda que atos do tipo são muitas vezes atrelados a questões socioeconômicas.
"Em momentos onde se vivencia a situação de crescimento dos desemprego, de acesso a direitos, além, claro, de questões ligadas a, por exemplo, aumento do consumo de álcool e drogas, acaba que isso sinaliza para uma ocorrência de maior número de denúncias de violência", destaca o advogado.
Sobre o perfil da vítima, Castelo pontua que costuma ser "heterogêneo", mas frisa que mulheres idosas, negras e pobres configuram o público mais vulnerável a ações do tipo. Já sobre o "agressor", o advogado afirma que a violência é muitas vezes "intrafamiliar". Ou seja, cometida pelos próprios familiares.
"Em geral, em quase 80% das denúncias que são formalizadas o possível agressor muitas vezes é um filho, um neto, às vezes, o próprio cônjuge, cuidadores (...) Pessoas com maior proximidade com o idoso (...) Em geral, são aquelas que mais expõem essa pessoa a situações de violência", aponta.
O defensor público Daniel Leão Hitzschky Madeira, que atua na Defensoria Pública do Ceará (DPCE), diz que entre as vulnerabilidades ligadas a idosos que são atendidas pelo órgão estão a econômica, a social e a vulnerabilidade da violência relacionada a abusos físicos, emocionais, financeiros, entre outros.
“Percebo que esses abusos notadamente são praticados por familiares ou cuidadores, principalmente por familiares, principalmente a questão dos abusos financeiros”, diz. Além disso, o profissional destaca que tem percebido um "aumento" do número de idosos com problemas de saúde mental.
“Todas essas violências impactam diretamente na qualidade de vida dessas pessoas idosas e é o papel da família, da sociedade, do estado, tentar encontrar medidas que visem diminuir ou extinguir essas vulnerabilidades, o que não é tarefa simples”, completa o defensor Daniel Leão.
Em Fortaleza, a prevenção de violência contra idosos é feita nos 27 Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), via Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif) e Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). De acordo com dados da SDHDS, em 2024 o Paif realizou 20.765 atendimentos e o Serviço de Convivência, 21.768.
Já nos seis Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) são acompanhadas ocorrências onde a violência foi consumada. Pelo Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi), os Creas fizeram 1.013 atendimentos em 2024.
Sinais de alerta
>Falta de acesso regular aos medicamentos
que necessita;
>Perda abrupta
ou ganho excessivo de peso;
>Presença de marcas de eventuais violências físicas;
>Sinais de depressão,
baixa estima;
>Ausência de acesso aos dados bancários, ao cartão de recebimento previdenciário ou assistencial, ou aos
próprios documentos.
Fonte: Raphael Castelo Branco, presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDPI).
SERVIÇO Como denunciar casos de violência
>No Brasil, o Estatuto do Idoso é a legislação específica que garante proteção à pessoa acima de 60 anos. Penas para quem comete essas ações podem chegar a 12 anos de reclusão em casos de abandono, exposição a perigo, condições degradantes, privação de alimentos, entre outros.
>Denúncias de violência podem feitas por meio do Disque 100 e a população de todo o Estado pode ligar para o 181, o Disque-Denúncia da SSPDS. O sigilo
e o anonimato são garantidos.
>Em Fortaleza, outras formas de denunciar violações aos direitos dos idosos é se comunicando diretamente com a Delegacia de Proteção ao Idoso e Pessoa com Deficiência (DPIPD) pelo telefone (85) 3101-2946, ou pelo e-mail
dpipd@policiacivil.ce.gov.br.
>O Escritório de Defesa dos Direitos Humanos (EDDH) também recebe denúncias de forma anônima e sigilosa por meio dos canais Disque 100 e do número 08002850880.
Fortaleza terá primeiro abrigo municipal
O número de casos de violência contra idosos cresce no momento em que Fortaleza caminha para ter a primeira Instituição Municipal de Longa Permanência para Idosos (ILPI). A Prefeitura assinou, em dezembro de 2024, o contrato para a construção do espaço, que vai funcionar na Messejana e ofertar 100 vagas.
Conforme o presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDPI), Raphael Castelo Branco, políticas desse porte podem contribuir para reduzir o número de violências contra esse grupo, uma vez que realizam o acolhimento dessas pessoas. Ele também destaca que o Município tem "um déficit histórico" de iniciativas como essa.
Para se ter uma ideia, de acordo com levantamento divulgado em maio de 2024 pelo Ministério Público do Ceará (MPCE), só há 45 ILPIs em Fortaleza para atender idosos em situação de vulnerabilidade. Dessas, quatro são filantrópicas, 40 são privadas e apenas uma é pública, gerida pelo Estado.
Mesmo as que já existem enfrentam desafios. O promotor de Justiça Alexandre Alcântara aponta que todas as unidades filantrópicas do tipo estão "lotadas" e frisa que o grande problema das particulares é o de manter a qualidade do serviço. Há atualmente outras iniciativas que atendem pessoas em situação de rua, como pousadas e galpões sociais e casas de passagem, mas são serviços de acolhimento temporário.
De acordo com MPCE, o abrigo municipal surge como resposta a uma Ação Civil Pública (ACP) movida pela entidade contra o Município ainda em 2011, onde foi solicitada a reserva de recursos para implementar uma ILPI para a terceira idade, demanda reforçada pela ação de movimentos populares.
No entanto, a questão passou por pelo menos três gestões municipais até que evoluísse de fato. Em 2017, a Prefeitura chegou a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) afim de instalar sete ILPIs, uma por Regional, a cada dois anos, mas só agora caminha para implementar a primeira.
Além do processo, MPCE também denunciou a situação de pessoas acima de 60 anos em situação de vulnerabilidade que estão abrigadas em hospitais da Capital por não terem uma casa para onde voltar.
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De acordo com o promotor Alexandre Alcântara, um levantamento feito recentemente pelo órgão ministerial aponta que há 48 pessoas vivendo nessa situação em unidades de saúde municipais. São pacientes que já tiveram alta médica mas não, "alta social", pois não têm onde ficar.
O promotor também frisa que o cenário sobrecarrega o sistema público de saúde, uma vez que idosos ocupam vagas de pacientes que necessitam. Além disso, ele diz que é preciso olhar para além do problema, enxergando a necessidade de criar políticas para esse público, que cresce exponencialmente.
Para se ter uma ideia, entre 2000 a 2023 o número de idosos saltou de 8,7% para 15,6% no Brasil, conforme dados divulgados em 2024 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
"Você tem o crescimento dessa população idosa mais vulnerável. O que o gestor público não observou ainda, e o que ele não leva a sério, é a revolução do envelhecimento. Nós temos uma realidade de envelhecimento público no Brasil em que as políticas públicas têm que mudar", destaca o promotor.
Nesse sentido, Alexandre aponta que criar ações para garantir o direito social à habitação de grupos desse nicho é uma forma de garantir aos mesmos outros direitos individuais e sociais.
"As ILPIs oferecem segurança, conforto, alimentação e acesso à serviços de reabilitação, como fisioterapia, terapia ocupacional, nutrição, lazer, proporcionando dignidade", pontua o promotor.
"O MPCE tem atuado para que esse serviço fundamental seja implementado pelo poder público (Município e Estado do Ceará/interiorizar o serviço). Desse modo, tem expedito Recomendações, proposto ações judiciais e dialogado com instâncias do executivo, legislativo e judiciário", completa.
Idosos que vivem nas ruas aguardam por acolhimento
Entre o vai e vem afobado de pernas na Praça do Ferreira, no coração do Centro de Fortaleza, um par de olhos tristes e cansados passa despercebido. São de Valter de Sousa, de 71 anos, uma das muitas pessoas em situação de rua que dormem em equipamentos e vielas do Município, sem casa para voltar e sujeito a todo tipo de violência.
O tempo para ele, que há três anos vive por ali, funciona diferente. Não tem pressa, pois não há para onde ir. Carrega consigo somente a roupa do corpo, um boné na cabeça e alguns pertences guardados dentro de uma sacola verde de supermercado. Tinha mais coisas, mas perdeu para a dinâmica de furto das ruas.
Antes disso, ele era casado e vivia em uma casa bem situada na Capital. Mas a separação e um vício o fez parar na rua. Conta que tem uma filha e 11 irmãos, mas não sabe onde vivem e tampouco aparentam querer saber dele. Aposentado, ele deseja ser acolhido em algum abrigo, mas quer mesmo é ter os parentes de volta.
"Eu não sei nem onde eles moram, mas se soubesse ia lá, não é nem por causa do dinheiro não (...) Ser sozinho no meio do mundo é muito ruim", confessa, desviando o olhar cheio de lágrimas.
Já Francisco Noberto, 76, não deseja voltar para a família, por motivos que não detalha. Vivendo na rua há mais de 15 anos, ele aguarda em uma praça próxima dali a chegada de uma ação social que deve trazer comida. Brinca que o local é o seu "shopping", mas senta no banco duro como se estivesse em casa.
Junto a outras pessoas de situação igual, ele conversa e gargalha, sem sequer sentir os pombos que vez ou outra bicam por engano seus pés. Contudo, o riso contagiante, que destaca as rugas ao redor dos seus olhos, não diz tudo. Uma cicatriz acima da sobrancelha, que ganhou após cair na rua, é que fala mais.
Recebendo aposentadoria e dormindo em galpões sociais, ele teve que aprender a não pertencer a canto algum, fazendo do pouco dinheiro o necessário e sobrevivendo a insegurança que o cerca diariamente.
"Eu quero morar em um abrigo pra ficar melhor do que aqui onde tô. Aqui na rua me roubam demais. Já me roubaram tanto que não tenho nada pra roubarem", diz, mudando o tom da voz para pedir: "Se você tiver um abrigozinho que puder me ofertar, eu quero viu?".
Quando a ação social chega para distribuir comida, ele vai para uma das filas que se forma. Do lado oposto ao dele, Maria de Fátima, 71, compartilha da mesma fome e de uma história semelhante.
A idosa de olhar curioso e miúdo já há quatro anos vive a peleja da vulnerabilidade. Chegou a dormir nas ruas, mas hoje consegue pagar um lugar onde descansa e protege seus sonhos. No entanto, o dinheiro que faz com costuras não é suficiente. Passa o dia no centro da Cidade, em busca de comida e atenção.
Tem filhos e noras, mas afirma que "não pode contar com eles" para nada. Sozinha, chegou a ter um companheiro, mas largou após atitudes grosseiras dele. Vivendo mais nas vielas do que em lugares seguros, ela deseja ter um abrigo onde possa repousar a velhice. É o que revela enquanto limpa o nariz sujo do mingau que acabou de ganhar. Queria sopa naquele dia, ela diz, mas não reclama.
Estudo deve mapear demanda na Capital
O total de 100 vagas que serão disponibilizadas pela Instituição Municipal de Longa Permanência para Idosos (ILPI) talvez não sejam suficientes para suprir a demanda que existe no Município. Isso porque o número de pessoas desse grupo que vive nas ruas de Fortaleza é subnotificado.
A última vez que a Prefeitura lançou um dado sobre o tema foi em 2021, por meio do Censo Municipal da População em Situação de Rua. Estudo apontou que, das 2.653 pessoas que viviam assim na Capital, cerca de 5,7% (aproximadamente 151 indivíduos) se encontravam na faixa etária de 60 anos ou mais.
Data do balanço, feito após uma recomendação do Ministério Público do Estado, mostra que índice está defasado em quatro anos. Para o promotor de Justiça Alexandre Alcântara é provável que o quantitativo atual seja bem maior do que o mostrado no balanço, com "muitos idosos" se encaixando nesse perfil.
"Essas cem vagas são apenas para iniciar, para tirar essas pessoas dos hospitais ou de outros equipamentos que não sejam adequados (...) Eu acredito que há um ambiente mais do que favorável para que nós tenhamos logo esse serviço público", aponta o agente de Justiça, com ótica positiva.
Alexandre Moreira, representante do Movimento População de Rua, também destaca que o número de vagas é insuficiente, classificando quantitativo como "pouco". O agente, que conhece essa realidade de perto por já ter vivido nela, aponta que é preciso "cinco" instituições do porte para atender demanda. Ele também pontua a necessidade da Prefeitura fazer um mapeamento para levantar o número real de pessoas que precida da política e destaca urgência, por causa da quadra chuvosa (entre fevereiro e maio).
Procurada pelo O POVO, a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) informou que será feito "um estudo intersetorial entre Saúde e Assistência Social para diagnosticar a atual demanda para internações de idosos e avaliar a possibilidade de aumento de vagas e de equipamentos do porte".
Pasta também informou que ILPI está em fase de elaboração de projeto estrutural pela empresa licitada e que após a conclusão "ela será apresentada para aprovação da Prefeitura, Conselho Municipal do Idoso e órgãos da rede de proteção". Enquanto projeto não é finalizado, os idosos em situação de rua são acolhidos com prioridade em outros abrigos da Prefeitura. A Capital conta com três acolhimentos municipais para pessoas em situação de rua e sete casas de acolhimento para crianças e adolescentes.
Construção do equipamento será supervisionada pela Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seinf) e tem "previsão de finalização em seis meses, após a apresentação do projeto e aprovação pela gestão municipal.
Questionada pelo O POVO sobre o público a ser acolhido, a SDHDS informou que "os critérios para internação de idosos serão definidos pela rede socioassistencial, após avaliação de equipe especializada, cumprindo as diretrizes estabelecidas pelo Sistema Único da Assistência Social (Suas)".