Faz quatro anos que Nara Camilo, 27, acompanha o Maracatu cearense. As mãos, firmes na grade que separa a plateia do desfile, parecem não ter se acostumado à sensação de, pela primeira vez, não estar movimentando a avenida Domingos Olímpio na noite de sábado, 1º de março.
Ela quer retornar. Diz que “nunca tinha ficado do lado de fora”, mas não parece se arrepender da chance de ver o ritmo sob o olhar estrangeiro de quem não sente o frio na barriga por representar a manifestação cultural nas ruas de Fortaleza.
“A gente quer estar lá no meio, né? Porque é uma energia muito forte de estar desfilando, estar com a estética, com as roupas, representando uma cultura ali”, considera. “Mas estar aqui de fora também é muito bonito, você vê as pessoas felizes e mostrando que estão empenhadas. É legal estar de fora também”.
Quando o Maracatu se tornou um patrimônio imaterial de Fortaleza, era 2015. Agora, cerca de 10 anos depois, o ritmo musical segue embalando a avenida da capital cearense, seja no clima chuvoso que antecedeu as apresentações de sábado, seja no calor que tomou conta da noite no domingo, 2.
Os desfiles vão cedendo os seus lugares na avenida, um após o outro. São agremiações diferentes, mas os cantos se reúnem entre os intervalos: o “Iansã, mãe do amanhecer, Iansã, mãe do céu rosado”, reverberado no desfile inicial da Corte Imperial, ainda parece ecoar quando o Maracatu Rei Zumbi inicia: “Aê, aê, meu rei Zumbi, brilha no negrume da noite…”.
O som, que já pestanejava antes, faz uma pausa maior e atrasa a chegada do Maracatu Obalomí na avenida, previsto inicialmente para 20h. Quem está na plateia aguarda o retorno, escutando anúncios sobre o Carnaval de Fortaleza.
“Teve uma melhora muito grande de visibilidade (do Maracatu)”, comenta o presidente do Obalomí, Martin de Andrade. “Dentro da avenida, a gente permanece com dificuldades, como o som. A estrutura do som não é bacana, tem muito delay”.
“Deveria se pensar um pouco mais no desfile”, diz, antes de acrescentar: “Mas o Maracatu não é só desfile, ele é o ano todo, é festa o ano todo”.
Como se previsse os resultados do Oscar 2025 (ou, talvez, simplesmente mantendo a esperança própria de quem faz Maracatu), outra agremiação (Maracatu Solar) estende uma faixa, contrastando com as cores vibrantes: “Rubens Paiva, Eunice Paiva e… Ainda estamos aqui”.
A chuva, uma das responsáveis por acanhar o público no sábado, não retornou na noite seguinte. Foi assim que o domingo, 2, recebeu a sequência de desfiles com palmas, gritos de apoio e mãos se movimentando em sinal de reconhecimento.
Se o estudante Rodrigo Paulino, 26, pudesse ver a avenida movimentada novamente, teria se surpreendido ainda mais. No sábado, ao lado de Nara, sua amiga, revelou ser a primeira vez que acompanhava o ritmo ao vivo.
“A primeira coisa que me chamou atenção são as crianças que desfilam no Maracatu. É um ponto muito bonito, porque é a perpetuação de uma cultura, uma manutenção da cultura que se renova”, relatou, com encanto.
No segundo dia, o intervalo entre os desfiles poderia oferecer a Paulino uma confirmação de sua fala: as crianças - longe da chuva - entraram em cena. Em sua maioria fantasiadas, eram parte da plateia e, ao passarem pelas grades, carregavam sprays de espuma para cobrir o chão com pequenos pontos esbranquiçados.
São pequenos Homens-Aranha, Elsas e Jasmines que precedem informalmente o Maracatu Nação Fortaleza. Eles correm na direção das arquibancadas quando o anúncio de mais um desfile é compartilhado no alto-falante, e retornam aos pais.
Na avenida, quem desfila são outras mães, segurando a faixa: “Juventude Viva - 10 anos da Chacina do Curió”.
“Pela visão de muitas pessoas, o Carnaval é festa isso, festa aquilo… Não: o Carnaval é uma festa de denúncia, de busca por justiça”, afirma Edna Carla, que representa em memória o filho, Álef. “É na avenida que a gente transmite as nossas dores, as nossas vontades de justiça, os nossos desejos de que não aconteçam mais mortes”.
“Eu perdi meu filho na Chacina do Curió, o Álef. Ali está o nome dele”, diz Edna, e aponta para uma placa decorada com fitas coloridas. “Mas eu não baixei a minha cabeça. Eu fui lá, lutando, trazendo pras ruas a reivindicação por justiça”.
O segundo dia de apresentações também é marcado pela presença de dois vencedores, que alcançaram o primeiro lugar em 2024: o Maracatu Leão de Ouro (vencedor do sábado) e o Maracatu Rei de Paus (vencedor do domingo).
Ao final de seu desfile, que abriu as celebrações no segundo dia, o presidente do Rei de Paus —maracatu mais antigo em atividade de Fortaleza —, Francisco Barbosa, não titubeia: “É muito difícil fazer Carnaval em Fortaleza”.
“É humanamente impossível. A gente fica pedindo cartão de crédito, cheque emprestado, pix emprestado… É muito triste”, desabafa. “É um trabalho de 71 anos que existe em nossa família (Barbosa). Nós fazemos cultura não por dinheiro, e sim porque sabemos fazer”.
A afirmação vem um dia depois de a secretária municipal de Cultura, Helena Barbosa, destacar as intenções de que 2025 seja um ano de maiores prioridades para o fomento do Maracatu: “Ter mais tempo de criação, ter mais suporte para essas condições de criação”.
“Estava até falando com eles (grupos de Maracatu) para a gente se reunir, avaliar esse edital, avaliar as formas de fomento, as práticas de formação, e como a Secretaria (municipal de Cultura de Fortaleza) pode dar toda a atenção que o Maracatu merece”, diz.
Quando encontramos o presidente do Leão de Ouro, Babi Ferreira, o desfile, que fecha as celebrações do final de semana, está prestes a começar. Ele está ocupado, mas segura gentilmente o braço da repórter e oferece tudo o que o Maracatu clama e, dentro de sua constituição de resistência, oferece: tempo e atenção.
“É um ano todinho de muito trabalho, luta e determinação. É um ano que eu, particularmente, luto pela minha saúde”, reflete. “Eu estou colostomizado e é difícil, mas eu tenho que achar uma maneira de lutar pra dar certo”.
foi bem
A estrutura e o clima de tranquilidade possibilitaram a presença de um bom número de famílias no polo, com crianças, adultos e idosos
foi mal
Os desfiles são o carro-chefe, mas a ausência de outras atrações amornam o clima em alguns momentos. A estrutura de som foi reforçada, mas em volume que dificultava diálogos