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"Adolescência" em crise: como frear a radicalização online e a violência entre os jovens
Reportagem

"Adolescência" em crise: como frear a radicalização online e a violência entre os jovens

Especialistas apontam que a internet e as redes sociais ampliaram a disseminação de ideologias extremistas entre jovens
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adolescência  (Foto: adobestock)
Foto: adobestock adolescência

Era só uma piada. Depois, virou um meme. Em pouco tempo, tornou-se uma comunidade inteira, onde o ódio é disfarçado de humor, e a violência, de “justiça”. Em fóruns anônimos, grupos de mensagens e redes sociais, jovens são atraídos para bolhas onde preconceitos como machismo, racismo e teorias conspiratórias se espalham sem barreiras.

Até que o mundo real começa a sentir o impacto, às vezes, de forma brutal. Esse contexto é retratado na minissérie Adolescência, dirigida por Philip Barantini. Estreada em 13 de março de 2025, a obra ganhou destaque ao se inspirar em casos reais para explorar a radicalização juvenil.

A trama acompanha Jamie, um garoto de 13 anos acusado de assassinar uma colega. O enredo levanta uma questão intrigante: o que levou um adolescente, de uma família estável, a cometer tal ato? A série destaca os perigos da vida online e como influências digitais podem passar despercebidas por pais, professores e autoridades.

De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, 93% da população brasileira entre 9 e 17 anos utiliza a internet regularmente. O estudo também revela que 83% possuem perfis em plataformas digitais e as utilizam pelo menos uma vez por semana.

A faixa etária de 15 a 17 anos é a mais presente online, com 99% de adesão, seguida pelos adolescentes de 13 a 14 anos (93%). Mesmo entre as crianças, a presença digital é significativa: 60% das de 9 a 10 anos e 70% das de 11 a 12 anos possuem perfis, ainda que, em teoria, as plataformas não permitam usuários menores de 13 anos.

Outro dado preocupante da pesquisa mostra que 42% dos jovens entre 9 e 17 anos já viram alguém ser discriminado na Internet.

Especialistas apontam que, embora comportamentos hostis entre jovens existam há muito mais tempo, as plataformas digitais proporcionaram um terreno fértil para a disseminação de ideologias extremistas. 

Brenda Guedes, doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e co-fundadora da Rede de Pesquisa em Comunicação, Infâncias e Adolescências (Recria), explica que as redes sociais são baseadas em um modelo de negócios voltado para a economia da atenção.

"Elas priorizam conteúdos que geram mais engajamento, o que inclui discursos mais polêmicos, como os discursos de ódio, misóginos, racistas, entre outros preconceitos”, destaca.

Segundo a pesquisadora, para captar a atenção dos usuários pelo maior tempo possível, as plataformas também costumam entregar conteúdos que aparentam ser mais interessantes para quem acessa.

“Isso é muito natural na adolescência: dúvidas surgem, e osjovens buscam descobrir coisas. Antes, eles precisavam perguntar a alguém ou ir a uma biblioteca, mas agora podem buscar informações no Google ou, por exemplo, no TikTok”, disse.

A neuropsicóloga Luisa Freire, doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), no entanto, ressalta que o impacto desses conteúdos varia conforme a estrutura psicológica e o contexto social de cada um.

“Os adolescentes não são folhas em branco. Por exemplo, se dois adolescentes com realidades diferentes acessam o mesmo conteúdo misógino na internet, o impacto pode variar. Um pode ser influenciado a adotar pensamentos de ódio e reforçar visões violentas, enquanto o outro pode ignorar o conteúdo”, diz.

A qualidade dos vínculos sociais e familiares é um fator essencial na forma como os adolescentes lidam com os conteúdos digitais. Segundo a neuropsicóloga, jovens que possuem uma rede de apoio sólida tendem a ser menos suscetíveis a discursos de ódio.

“É possível que o ambiente ao redor dele valide esse tipo de pensamento. Isso pode vir da cultura em que ele está inserido, dos conteúdos que consome dentro de casa ou até das referências masculinas que tem na família ou de pessoas próximas”, destaca.

A especialista também aponta diferenças de impacto entre meninos e meninas. "Estudos indicam que as mulheres tendem a sofrer mais danos à saúde mental devido à internet, especialmente em relação à autoimagem. Vemos um aumento nos casos de transtornos alimentares e dismorfia corporal, pois as redes sociais reforçam padrões estéticos irreais", diz Freire.

Por outro lado, os meninos tendem a ser mais capturados por discursos de ódio e extremistas.

"Para muitos, essas ideologias se tornam uma forma de canalizar raiva e ressentimentos que não podem expressar no ambiente familiar e social", explica a neuropsicóloga. "A ideia de que 'homens não choram', por exemplo, leva a uma internalização de sentimentos reprimidos, o que pode se manifestar em violência ou engajamento em comunidades radicais online".


 

Recomendações e glossário

Glossário

Misoginia:
ódio, apologia à violência e aversão às mulheres.

Machosfera:
comunidades masculinistas que propagam ideias misóginas.

Incel:
homens que se consideram celibatários involuntários e culpam as mulheres por sua falta de sucesso amoroso.

Red pills:
ideologia baseada na crença de que a sociedade favorece as mulheres em tudo e que os homens são prejudicados.

Pick-up Artists:
indivíduos que compartilham técnicas de sedução e manipulação para conquistar mulheres

MGTOW
(Homens seguindo seu
próprio caminho, em tradução para o português):
Homens que evitam qualquer relação com mulheres, alegando busca por independência, mas propagando misoginia.

Teoria 80/20:
Ideia de que 80% das mulheres sentiriam atração por apenas 20% dos homens.

Recomendações
para Famílias
sobre o Uso de Telas

Primeira Infância (0 a 6 anos)

Bebês (0 a 2 anos): Evitar telas, exceto para videochamadas com familiares, sempre com supervisão.

Priorizar brincadeiras, interações face a face, leitura e atividades físicas.

Optar por conteúdos audiovisuais adequados à faixa etária e desativar a reprodução automática em aplicativos e serviços de vídeo.

Crianças (6 a 11 anos)

Estimular brincadeiras e atividades físicas, limitando o tempo de tela.

Escolher jogos digitais que incentivem interação familiar, aprendizado e que não envolvam violência ou compras.

Evitar a posse de smartphones; caso necessário, optar por telefones sem acesso à internet.

Proibir o acesso a redes sociais e aplicativos de mensagem.

Adolescentes (12 a 17 anos)

Mediação familiar ativa, especialmente antes dos 14 anos.

Supervisionar redes sociais, aplicativos de mensagem e jogos, respeitando a Classificação Indicativa.

Dialogar sobre os riscos da internet: cyberbullying, pornografia, assédio, extorsão vinculada à exposição de conteúdo íntimo e jogos de azar.

Recomendações gerais

1Priorizar conteúdos educativos e atividades coletivas.

2Adultos devem moderar o uso de dispositivos em momentos familiares.

3Não usar telas como recompensa ou punição.

4Garantir que as telas para entretenimento venham após as tarefas escolares.

5Evitar dispositivos durante as refeições e pelo menos 1h antes de dormir.

6Optar por configurações que reduzam a coleta de dados.

7Procurar ajuda profissional diante de sinais de uso excessivo ou problemático.

Fontes: Guia sobre Usos de Dispositivos Digitais, do Governo Federal e SaferNet Brasil

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 07-04-2025: Antonio e a sua mãe Melissa que fala um pouco sobre as etratégias para pais e educadores monitorarem esse consumo das redes por parte de crianças e adolescentes. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 07-04-2025: Antonio e a sua mãe Melissa que fala um pouco sobre as etratégias para pais e educadores monitorarem esse consumo das redes por parte de crianças e adolescentes. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

Mães ficam entre o controle e a flexibilidade

A assessora de comunicação Melissa Rodrigues, 38, é mãe de dois adolescentes, um menino de 14 anos e uma menina de 12. Ela conta que monitora de perto as atividades online dos filhos. "O Instagram deles está logado tanto no meu celular quanto no meu computador, assim como o WhatsApp. Tenho acesso ao que eles veem e com quem conversam", afirma.

Melissa conta que busca educá-los para respeitar as diferenças. "Com meu filho, por exemplo, ensino a importância do respeito, seja comigo, com a irmã, ou com qualquer outra mulher. Já com minha filha, gosto de destacar que ela nunca deve deixar sua voz ser silenciada", explica.

Apesar do acompanhamento em casa, Melissa reconhece que os filhos estão expostos a influências externas. "Eles vão ter contato com colegas que podem mostrar vídeos, fotos ou conversar sobre assuntos que não são apropriados para a idade deles. Por isso, trabalhamos muito para que saibam como reagir frente a qualquer situação", pontua.

Já a psicóloga Hilda Costa, mãe solo de uma jovem de 13 anos, a preocupação com a influência da internet na criação da filha se tornou ainda mais real depois de um episódio delicado: a menina foi responsável por praticar bullying contra uma colega. "Talvez seja mais fácil, entre aspas, lidar quando o seu filho é a vítima, mas quando ele é quem provoca, é uma sensação muito ruim de impotência", desabafa.

O caso a fez questionar onde poderia estar errando. "Foi bem constrangedor. Acabei me entendendo com a mãe da menina que sofreu o bullying, mas a adolescente está, sem dúvidas, sofrendo as consequências até hoje".

A experiência fez Hilda reforçar o controle sobre o que a filha consome online, estabelecendo um limite de três horas diárias para o uso de telas e utilizando um aplicativo de monitoramento. "Permito que ela tenha acesso a alguns aplicativos, mas não a outros. Também regulo quando quero que ela use, por exemplo, apenas o WhatsApp ou o Spotify, e não o Instagram ou o TikTok."

Ainda assim, ela reconhece que a influência das redes sociais vai além do que pais e escolas conseguem combater sozinhos. Para ela, a solução passa por um esforço coletivo. "A escola pode abordar temas como bullying, machismo, homofobia e todos esses assuntos polêmicos. Acredito que seja uma força-tarefa entre pais, escola e comunidade. Porque do jeito que está, está muito complicado."

 

Forma de abordagem sobre uso é essencial

A forma como pais e educadores abordam o uso da internet pelas crianças e adolescentes pode ser determinante para reduzir os impactos negativos, conforme a neuropsicóloga Luisa Freire.

"Se você simplesmente chegar e perguntar se ele tem assistido a conteúdos de cunho racista, homofóbico ou misógino, ele provavelmente vai negar ou se fechar. Pode parecer que, de repente, o adulto resolveu se interessar pelo que ele faz na internet - e isso pode soar invasivo",

Ela sugere que os pais devem demonstrar interesse real pelo que os filhos consomem online.

"Pergunte o que os filhos estão assistindo, quem eles seguem. Assistir a vídeos juntos, por exemplo, pode ser um caminho interessante para entender melhor esse universo. Eventualmente, dar uma olhada nos conteúdos que eles consomem, mas não com o objetivo de julgar, e sim de conhecer", indica.

Outro ponto importante é a forma de abordagem caso surjam conteúdos problemáticos:

"É importante levar isso para o debate sempre de forma aberta e respeitosa. Algo como: 'Olha, você já percebeu que esse vídeo que está assistindo tem características racistas? Parece uma brincadeira, mas é algo extremamente ofensivo para alguém. Já parou para pensar nisso?", diz.

Já no ambiente escolar, Freire acredita que as discussões devem ser incorporadas ao longo do ano.

"Um professor pode usar filmes para debates, por exemplo. Isso cria espaço para os alunos refletirem e discutirem, ensinando respeito e convivência ética online. Fomentar o senso crítico ajuda os adolescentes a proteger tanto a si mesmos quanto aos outros", diz.

Plataformas e governo também devem se responsabilizar

O poder da internet é imenso e cria uma assimetria em relação à capacidade das famílias de controlar o que seus filhos consomem. Para a doutora em Comunicação Brenda Guedes, a saída requer uma abordagem ampla, envolvendo governo, sociedade e empresas.

Uma possível solução seria a implementação de princípios de "segurança por design", conceito que visa garantir que produtos digitais sejam pensados desde o início para proteger os mais novos. "Não adianta simplesmente colocar um aviso dizendo 'este produto não foi desenvolvido para crianças e adolescentes'.

Eles têm o direito de participar das experiências digitais de forma segura", explica.

Além da responsabilidade das plataformas e das famílias, Guedes afirma que os governos devem atuar ativamente na regulamentação e implementação de medidas para proteger os jovens.

"Sabemos que discursos de ódio se espalham com muito mais rapidez do que valores como solidariedade e empatia. Por isso, estamos buscando alternativas para dialogar com essa realidade", diz Helder Nogueira, secretário executivo de Equidade e Direitos Humanos da Secretaria da Educação do Ceará (Sesa).

Ele destaca a Lei nº 15.100/2025 que restringe o uso de celulares nas escolas, permitindo seu uso apenas para fins pedagógicos; a realização de Festival "Alunos que Inspiram" e "Intervalos Culturais" que incentivam arte e cultura no ambiente escolar; e o projeto "Escola Acolhedora", onde a principal iniciativa é a educação e direitos humanos do Estado, abordando temas como: Uso responsável da internet, prevenção de violências e combate às fake news e ao cyberbullying.

Em 2022, um trágico incidente em Sobral envolveu um aluno de 15 anos que atirou em três colegas dentro de uma sala de aula. O ataque, segundo o adolescente, foi premeditado após ser vítima de bullying.

Helder Nogueira declarou que, desde então, novas medidas de segurança foram adotadas nas escolas. "Todas as 23 regionais têm contato constante com os comandos da Polícia Militar em suas áreas, promovendo um policiamento comunitário baseado nos direitos humanos", explica.

Para prevenir situações de violências nas escolas públicas e privadas, o Ministério Público do Ceará (MPCE) criou em 2023 o programa Previne. Em 2025, a iniciativa foi aderida, pela primeira vez, pelos 184 municípios. A medida visa implementar comissões de prevenção à violência em todas as escolas, compostas por diretores, professores ou coordenadores e funcionários.

"Nos últimos dois anos, mais de 15 mil profissionais da educação foram treinados em temas como bullying e o impacto das redes sociais. Com a inclusão de Fortaleza e outros 18 municípios, espera-se capacitar 3 mil novas pessoas, aproximando o total de 20 mil capacitações", diz o promotor de Justiça Hugo Mendonça, coordenador auxiliar do Centro de Apoio à Educação (Caoeduc).

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