A corrida para a adoção de ferramentas de Inteligência Artificial (IA) na educação já começou. Com a rápida evolução da tecnologia, escolas, estudantes e professores são impactados por promessas e desafios inerentes à incorporação dos recursos.
Estudantes usam chatbots para tirar dúvidas e programas de tutoria personalizada para se aprofundar nos conteúdos. Já os professores procuram a IA para corrigir redações e formular atividades. Os sistemas também auxiliam na administração de notas, faltas e mapeamento de dificuldades de aprendizagem.
Cristyam Otaviano, 28, professor de Química da Escola de Ensino Médio de Tempo Integral (EEMTI) Presidente José Sarney, em Caucaia, relata que os alunos usam as IAs “para absolutamente tudo, de maneira indiscriminada, até”.
“Eu falo sempre que não é porque é Inteligência Artificial que é inteligente. Tem que verificar se está certo. Tento orientar da maneira mais apropriada”, conta o professor, que já usa ferramentas de IA para atividades repetitivas e manuais, como organizar notas, mas também para elaborar questões de prova e materiais de estudo.
A professora de Matemática Mariane Euzébio Lima, 37, da Escola de Ensino Médio Flávio Ponte, em Maracanaú, é outra docente que passou a usar plataformas para auxiliar no planejamento e preparação de aulas. O receio de “ficar para trás” e a necessidade de orientar alunos fez com que ela procurasse se informar mais sobre a tecnologia.
“Eles não entendem que o ChatGPT pode fazer um artigo, um relatório, mas que ele também erra. Não tem essa criticidade de querer ler o que está escrito. Às vezes são erros que o aluno sabe, mas ele foi tão mecanicamente naquilo que fez de qualquer jeito só para entregar”, diz.
Os dois docentes participaram de uma formação piloto promovida pela Secretaria Estadual da Educação (Seduc) sobre o uso de IA na escola. A iniciativa, implementada em 2024, tem como objetivo qualificar os professores de 40 escolas da Região Metropolitana de Fortaleza para utilizar a tecnologia de forma crítica e alinhada com princípios pedagógicos, incluindo encontros presenciais e acompanhamento após as aulas.
Esse é um dos eixos do Plano de Educação Digital que está sendo elaborado pelo Ceará. O documento deve ficar pronto até o fim de 2025 e segue as diretrizes da Política Nacional de Educação Digital (PNED), instituída em 2023.
Conforme o diretor do Centro de Formação e Desenvolvimento para Profissionais da Educação (FormaCE), Ronaldo Maia, a formação piloto busca dar segurança ao professor no uso das ferramentas, além de discutir dilemas éticos, desafios e a demanda de adaptar os recursos disponíveis à estrutura de cada escola. O treinamento deve ser expandido para toda a rede.
“Todas as ferramentas são de acesso livre. A gente procura plataformas que funcionem dentro da capacidade que o computador que o professor recebeu e o tablet que o aluno recebeu possam executar”, explica Ronaldo. Os equipamentos são entregues pelo Governo do Estado.
Mariane afirma que o avanço no uso das ferramentas por parte dos professores muitas vezes esbarra em questões estruturais, como acesso à internet de qualidade e equipamentos disponíveis, como projetores. Além disso, colegas mais velhos têm uma resistência maior às novas tecnologias. “Mas eu creio que ainda dá tempo”, diz.
A secretária executiva do Ensino Médio e Profissional da Seduc, Jucineide Fernandes, admite que a falta de letramento digital dos professores e a infraestrutura tecnológica ainda são desafios para o ensino público conseguir incluir as novas tecnologias digitais no dia a dia.
Além da formação de professores e da política de distribuição de notebooks, tablets e chips já em vigor, o Plano de Educação Digital do Estado deve estabelecer metas de conectividade.
A expectativada Seduc é de que até o fim de junho de 2025, 55% das escolas tenham Wi-Fi de 100 a 200 megas (Mbps). Até o fim do ano, a meta é que todas as escolas tenham Wi-Fi deste nível de velocidade, não só a internet cabeada — mais comum nos ambientes escolares do Ceará.
O documento deve nortear a política de letramento digital dos estudantes de maneira transversal, segundo Jucineide, da mesma forma que são tratados temas como antirracismo e meio ambiente: em todos os componentes curriculares.
“Não adianta a gente ter muitas ferramentas se a sociedade não tem letramento digital. É o básico para você analisar o que está disponível com criticidade, saber fazer escolhas. É por isso também que é para trabalhar preceitos éticos do uso (das IAs), principalmente em relação à desinformação, que gera muitos transtornos”, afirma.
Um projeto que propõe a criação de diretrizes para o letramento digital nas escolas públicas da rede estadual do Ceará tramita na Assembleia Legislativa do Estado (Alece). De autoria do deputado estadual Acrísio Sena (PT), o projeto de indicação nº 147/2025 prevê o ensino de competências críticas e éticas no uso das tecnologias, com ênfase na Inteligência Artificial (IA) e sustentabilidade socioambiental.
A proposta visa integrar essas habilidades ao desenvolvimento cognitivo dos alunos e às especificidades regionais, como as realidades do Semiárido.
Entre os principais eixos do projeto estão: a inclusão digital em áreas vulneráveis, o uso ético da IA como ferramenta pedagógica, a formação continuada de professores e a modernização da infraestrutura tecnológica das escolas.
Também está prevista a criação de redes colaborativas entre educadores, pesquisadores e desenvolvedores de tecnologia, além da inserção de critérios sustentáveis e de cidadania digital nas avaliações educacionais.
O texto sugere que a Secretaria da Educação do Estado (Seduc) tenha a responsabilidade de implementar um plano de ação abrangente, com conteúdos voltados ao pensamento computacional, cultura digital, segurança da informação e acessibilidade.
Há ainda a previsão da criação de um Comitê Gestor com participação da comunidade escolar e a instituição do selo “Escola Inovadora e Sustentável”, que premiará unidades de ensino com melhores resultados nas áreas de inovação pedagógica e práticas sustentáveis.
O projeto também propõe que os recursos venham do orçamento vigente, incluindo o Fundeb e parcerias com universidades e instituições privadas.
“Para nós a ideia do letramento digital deve ser tratada de forma transversal e interdisciplinar”, afirma Acrísio. O projeto é discutido nas comissões da casa legislativa e deve ser debatido também em seminários promovidos nas 14 macrorregiões do Estado.
Com a adoção das tecnologias digitais no cotidiano escolar, seja de forma oficial ou não, surgem questionamentos das melhores maneiras de incluir no currículo o ensino sobre esse campo do conhecimento.
A mesma resolução do Conselho Nacional da Educação (CNE) que instituiu diretrizes para o uso e proibição de celulares nos espaços escolares, publicada em março de 2025, determinou que a compreensão de algoritmos e o uso de dados para treinamento de máquinas, das plataformas digitais e das diferentes formas de Inteligência Artificial (IA), devem estar no currículo dos estudantes.
Não só a parte computacional, mas também as questões éticas e sociais dessas tecnologias devem fazer parte da formação básica. Essa premissa está no cerne do complemento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aprovado em 2022, que estabelece normas para o ensino de computação.
A tecnologia, no entanto, ainda passa por regulamentação no País. O projeto de lei 2338/23, que cria regras para a Inteligência Artificial no Brasil, ainda tramita na Câmara dos Deputados.
O novo Plano Nacional de Educação (PNE), que cria metas para a educação a serem atingidas até 2034, tem um objetivo específico sobre o tema: promover a educação digital para o uso crítico, reflexivo e ético das tecnologias da informação e da comunicação para o exercício da cidadania.
Esse objetivo deve ser alcançado por meio da meta de assegurar a conectividade à internet de alta velocidade para uso pedagógico em 50% até o quinto ano de vigência do plano e em todas as escolas até o final do decênio.
Além disso, o Brasil se compromete a dar nível adequado de aprendizagem em educação digital para 60% dos estudantes da educação básica até 2034. O texto ainda está em tramitação na Câmara dos Deputados. Depois de passar pela Câmara, será analisado no Senado Federal.
“A Inteligência Artificial não tem mais retorno. A gente precisa utilizar de forma responsável, inteligente, com fins pedagógicos”, afirmou o ministro da Educação, Camilo Santana. Segundo ele, as diretrizes curriculares da educação digital estão sendo revistas. O MEC também está elaborando o Referencial para Uso e Desenvolvimento Responsáveis de Inteligência Artificial na Educação.
Para a pesquisadora e diretora do Instituto Educadigital, Priscila Gonsales, apesar da popularização do termo ser recente e o acesso à IA generativa por meio de plataformas de chat ter sido facilitado nos últimos anos, não há como separar a IA do restante das tecnologias digitais.
“Inteligência Artificial é só um nome que se configurou lá na década de 1950 e até hoje há muitas pesquisas em torno desse termo. Mas ele não significa muita coisa. O que significa é o modelo estatístico que está por trás. E esse modelo está sendo incorporado em diversas aplicações, produtos e soluções”, explica.
Ao mesmo tempo em que não pode ser ignorada, a “corrida” para incluir a IA no ambiente educacional como ferramenta para o aprendizado pode ser prejudicial, conforme Priscila, caso sejam desconsideradas as ideologias das empresas detentoras da tecnologia, o impacto ambiental, a extração de dados pessoais de usuários e as mudanças de comportamento que podem surgir com o uso.
“O campo da educação ainda olha pras tecnologias digitais como instrumentos, como se qualquer novo lançamento tivesse de ser imediatamente incorporado numa prática pedagógica para melhorar o ensino de uma disciplina ou motivar estudantes. Só que a tecnologia é um campo de conhecimento. Está mais do que na hora disso ser compreendido”, diz.
Vladimir Nunam, CEO da startup Eduvem — plataforma educacional acelerada pela Casa Azul Ventures — e colunista do O POVO+, defende o ensino sobre tecnologia para incentivar estudantes a explorar, criar e resolver problemas reais, não só a aprender a interagir com sistemas específicos.
Até mesmo a escolha de quais plataformas utilizar carece de cuidado. Vladimir explica que as bases de dados usados para alimentar a maioria dos sistemas de IA não são brasileiras.
“São dados que levam uma estrutura e representam coisas internacionais. Elas são treinadas com contextos estrangeiros, principalmente o norte-americano. Então, a gente corre o risco de criar soluções que estão totalmente desalinhadas com a nossa realidade”, afirma o CEO.
Priscila atenta ainda para a segurança dos dados dos estudantes e professores, que não é garantida por muitas das big techs responsáveis por modelos educacionais de IA. Estudo analítico feito em 2022 pela Iniciativa Educação Aberta (IEA) em parceria com o Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin) mostrou desrespeito das empresas à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
“A tecnologia não é neutra, ela não é feita só pra gente usar, ela também nos usa o tempo todo. Ela muda comportamentos, extrai nossos dados para diversos tipos de uso, tanto para melhorar o próprio produto, como também para obter predições sobre os nossos comportamentos. Isso gera lucro para as empresas desenvolvedoras”, explica.