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A nuvem no Ceará: Os prós e contras do data center de R$ 50 bilhões
Reportagem

A nuvem no Ceará: Os prós e contras do data center de R$ 50 bilhões

| Nova economia | Ceará deve receber data center de hiperescala com padrão internacional. Investimento é posto em questionamentos ambientais e sociais
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Além de hub de hidrogênio verde, Ceará quer se viabilizar como polo de data centers a partir de investimento de R$ 50 bilhões (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Além de hub de hidrogênio verde, Ceará quer se viabilizar como polo de data centers a partir de investimento de R$ 50 bilhões

Na escalada de demanda por IA, o mercado de data centers se aquece e olha para o Brasil. A digitalização dos processos e a cobrança por soluções mais rápidas movem o setor de tecnologia. No Ceará, o projeto de instalação de um data center de hiperescala (ou hyperscale), de R$ 50 bilhões — o que seria até o momento o maior da história do Ceará — tem gerado discussões em torno dos impactos positivos e negativos.

O POVO obteve, com exclusividade, o Relatório Ambiental Simplificado (RAS) apresentado pela Casa dos Ventos à Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace). Os dados põem luz à discussão que tem tomado espaço no debate público e ampliam com detalhes pontos do projeto.

A partir da apresentação, a empresa obteve a licença prévia, a primeira de três necessárias para viabilizar a operação. Sendo assim, o RAS detalha aspectos técnicos do projeto, bem como os impactos ambientais projetados. São 658 páginas.

O Data Center Pecém prevê um total de 31 reflexos nas fases de planejamento, instalação e operação. Desses, dez são relacionados ao meio físico, nove à fauna e flora e 12 ao meio socioeconômico. Do total, a Avaliação de Impactos Ambientais (AIA) classificou dez como significativos: três positivos e sete negativos.

Pode parecer uma discussão distante para o grande público, mas não. A "nuvem" que armazena os dados tem endereço: o Ceará.

Quem acessa redes sociais, sites na internet ou soluções de inteligência artificial está ligado diretamente a esse movimento, porque boa parte das informações estão alocadas em grandes prédios lotados de servidores e equipamentos de rede, que sustentam as plataformas no ar e "rodam" os pedidos. Todo clique é uma solicitação que chega a esses centros de dados.

Quando se fala em hiperescala, a referência é a equipamentos de aproximadamente 100 vezes mais capacidade do que as quase 170 estruturas já instaladas ao redor do Brasil, segundo estimativa da Associação Brasileira de Data Centers (ABDC).

Há quase uma década o Ceará convive com esse tipo de investimento, especialmente pelo fato de Fortaleza ser um ponto de cabos submarinos (16 em operação e 18 no total, na Praia do Futuro).

Os países com a maior quantidade de data centers instalados são os Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido, segundo a Electric Power Research Institute.

Com o avanço da inteligência artificial, a demanda de grandes empresas de tecnologia, como Amazon, Google, Meta e Microsoft, alavanca uma corrida por armazenamento de dados.

E o Brasil quer se inserir neste mercado, devendo lançar política nacional que prevê isenção de impostos para esse tipo de aporte, com a finalidade de atrair R$ 2 trilhões na próxima década.

O projeto da Casa dos Ventos para o data center de hiperescala no Ceará envolve uma grandiosa demanda por energia. Na primeira fase, o consumo esperado é de 210 megawatts (MW). Há a expectativa de que essa demanda quase dobre em uma segunda fase, com a previsão de ampliação da operação.

Além da energia, o empreendimento também estima uma demanda diária de aproximadamente 30 metros cúbicos (m³) de água. Este cálculo considera a implementação de um sistema de resfriamento de ciclo fechado, que utiliza chiller a ar para as máquinas em operação.

Esse sistema promete diminuir em quase 95% o consumo médio de água em comparação com outros data centers, que podem gastar cerca de 235 m³/dia. O consumo projetado já incorpora a perda de água inerente ao sistema de resfriamento em ciclo fechado, equivalente a aproximadamente 10 m³/dia.

Em meio ao debate público sobre o impacto desse empreendimento, O POVO realizou conversas com especialistas no assunto e no mercado de data centers. O objetivo dessas discussões foi detalhar os principais pontos positivos e negativos que a instalação desse equipamento trará para o Ceará.


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Fortaleza-ce, Brasil - 09-11-2019: Imagens aéreas de Torres de Energia Eólica na orla do Ceará. (Foto: Júlio Caesar/O POVO)
Fortaleza-ce, Brasil - 09-11-2019: Imagens aéreas de Torres de Energia Eólica na orla do Ceará. (Foto: Júlio Caesar/O POVO)

Água, energia e terras: os bilhões prometidos compensam impactos?

Os impactos do ponto de vista ambiental e social e a falta de transparência sobre as medidas técnicas a serem tomadas para viabilizar o projeto são os principais questionamentos levantados sobre o Data Center Pecém.

Especialistas ouvidos pelo O POVO afirmam faltam informações claras e debate com a sociedade, mas o processo caminha e licenças são liberadas.

O Operador Nacional do Sistema (ONS) emitiu parecer favorável para data centers no Ceará, sendo a primeira fase com garantia de conexão na Subestação Pecém II 230 kv, já a outra fase do projeto foi "aprovada com condicionantes". Ou seja, só será confirmada com a conclusão de obras de transmissão.

Além das linhas de transmissão, a alta demanda por energia para abastecer as duas fases do projeto devem obrigar a uma expansão dos parques.

Criadora e líder do Observatório de Energia Eólica, da Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro do Conselho de Leitores do O POVO, Adryane Gorayeb, aponta que, tecnicamente, as áreas mais viáveis para projetos eólicos são os litorais (mais de 95% estão nesta condição) e serras.

Segundo ela, o avanço desordenado pode ser mais prejudicial do que positivo. "Esses territórios, tanto costeiros quanto marinhos (no caso de projetos eólicos offshore), já são utilizados por mais de 300 comunidades tradicionais, já existe o desenvolvimento histórico de economias locais, como turismo, lazer, esportes náuticos, pesca", pontua.

E pontua que não há estudos abrangentes do impacto do conjunto de parques de energia renovável, pois ao apresentar os estudos as empresas só analisam o impacto de seu empreendimento, como se ele fosse único no território.

Outro questionamento fica por conta do uso de água e a promessa da empresa de implementar um sistema que minimiza a demanda dos aquíferos locais.

Rodrigo Santaella Gonçalves, pesquisador da LUT University, na Finlândia, e professor do Instituto Federal de Edução do Ceará (IFCE) Campus Caucaia, aponta que avanços tecnológicos permitem a queda na demanda de água na operação de data centers, mas ainda há desafios.

Qual será a fonte de água e de que forma o sistema fechado condicionará a água, além de seu despejo, além de que forma será feita a fiscalização dos processos.

"A grande questão não é a possibilidade técnica das soluções, elas existem. Essa água de resfriamento demandará gastos energéticos e injeção de elementos anticorrosivos", aponta.

Julia Catão Dias, advogada, cientista social e coordenadora do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), aponta que os órgãos ambientais, Ministério do Meio Ambiente e entidades sociais não têm tido espaço no debate, nem mesmo acesso ao que será formulado - diferente de entidades empresariais interessadas no marco legal, relata.

Para Julia, o sentimento que fica é que há muito mais perguntas do que respostas em meio a tanta propaganda pró-data centers.

"É fundamental que a população saiba o que são esses centros de dados, esses data centers, e como eles vão impactar todas as comunidades ao seu redor a partir da sua chegada", afirma.

 

Amontada, Ce BR 19.04.22 - Projeto Offshore - Icaraí de Amontada (Foto: Fco Fontenele)
Amontada, Ce BR 19.04.22 - Projeto Offshore - Icaraí de Amontada (Foto: Fco Fontenele)

Data Center de hiperescala tem poder de fomentar projetos em energia e tecnologia

A construção de uma estrutura de hiperescala no Ceará tem o potencial de fomentar não só o setor de data centers, mas também o de energia e tecnologia. Fontes do mercado destacaram essa possibilidade.

Estudo do Lincoln Laboratory, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), aponta que até 2030 os data centers podem consumir até um quinto da energia elétrica gerada no mundo. O principal fator para essa alta é o avanço acelerado da Inteligência Artificial, o que tem provocado transformações profundas em diversos setores. Entre elas, a crescente pressão sobre a infraestrutura energética global.

O que é visto como desafio, por um lado, é observado como oportunidade de expansão de negócios no Ceará. Fábio Feijó, presidente da Zona de Processamento de Exportações (ZPE), destaca que o projeto da Casa dos Ventos é de tamanha magnitude que foi autorizado acesso à energia do sistema interligado nacional.

Ele diz que isso deve movimentar também a expansão dos projetos de parques eólicos, o que deve gerar outros bilhões em investimentos. Fábio aponta que o Ceará passará a estar inserido em duas cadeias econômicas que devem transformar sua economia.

"Data center é imediato, hidrogênio é médio e longo prazo. E os dois posicionam o Estado do Ceará em duas novas economias globais: a economia verde, através do hidrogênio, e a economia do conhecimento, através dos data centers".

Outra expectativa fica em torno do setor de tecnologia e serviços. Com o avanço da inteligência artificial, a demanda de grandes empresas do setor de tecnologia, como Amazon, Google, Meta e Microsoft, por mais data centers alavanca uma corrida.

Como o Data Center Pecém estará na área de ZPE, seu faturamento deve estar atrelado à exportação de serviços, ou seja, seus clientes devem ser internacionais. O que abre espaço para esses grandes players.

Isso também deve afetar positivamente na geração de empregos. A Casa dos Ventos confirma a geração de 13 mil vagas diretas na construção e quase 3 mil na operação, sendo vagas especializadas em tecnologia da informação.

O presidente da Fundação de Ciência, Tecnologia e Inovação de Fortaleza (Citinova), da Prefeitura de Fortaleza, Odilon Aguiar, pontua que viabilizar a atração de subsidiárias dessas grandes empresas, além de seus prestadores de serviços, é um dos focos.

E a formação de um distrito tecnológico na área das avenidas Dom Manuel e Monsenhor Tabosa faz parte disso. A intenção é fortalecer o já vibrante ecossistema de inovação do Ceará, destaca Odilon.

"Esse ambiente é muito rico. A presença dessas grandes estruturas qualifica a mão de obra local. Além disso, mesmo que os empregos diretos não sejam muitos, há uma cadeia de serviços ao redor que se beneficia: manutenção, segurança, conectividade, fornecedores", pontua.

Do ponto de vista desses fornecedores, Juliano Covas, gerente regional de Vendas da Corning, fornecedora de cabos de fibra óptica com 80 anos de atuação no Brasil e membro da Associação Brasileira de Data Center (ABDC), destaca que uma série de empresas podem se beneficiar com o avanço desse tipo de investimento, desde a construção até os equipamentos necessários para operação.

Marília Brilhante, diretora da Energo Soluções em Energias, destaca que a demanda por mais projetos de energia renovável demonstram o "planejamento e o compromisso ambiental", pavimentando o desenvolvimento sustentável do Nordeste.

Luiz Henrique Barbosa, presidente executivo da Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (Telcomp), destaca que o Ceará atualmente abriga data centers com capacidade instalada de energia de 15 MW a 20 MW.

E que abrir o mercado para parques de 500 MW abre um leque de possibilidade de relacionamentos com grandes empresas, assim como aconteceu em outros países nos últimos anos, como Portugal, que recebeu big techs, como Google e Microsoft.

Principais pontos do projeto revelados

  • Consumo de água para resfriamento: A opção tecnológica adotada para o sistema de climatização é o ciclo fechado com chillers a ar, que praticamente elimina o consumo de água durante a operação, reduzindo o consumo diário para apenas 18 m³, uma redução drástica de aproximadamente 95% em comparação com o ciclo aberto. Esta escolha reflete o compromisso com o uso racional de recursos naturais, especialmente em regiões com disponibilidade hídrica limitada como o Ceará.
  • Consumo de energia na operação: O consumo de energia previsto para o projeto do Data Center é de 210 MW em média, o que representa 70% da capacidade total disponível (300 MW). O consumo diário de energia previsto é de 5.040 MWh para a operação. O documento reitera que toda a energia utilizada para o projeto será de fonte renovável.
  • Geração de empregos: O projeto do Data Center Pecém deve gerar 13 mil empregos diretos na fase de obras. Já na operação é esperado que sejam contratados quase 3 mil funcionários, a maior parte especializados no setor de tecnologia.
    Fonte: Relatório Ambiental Simplificado (RAS) Data Center Pecém

Impactos ambientais mapeados

Total de 31 impactos mapeados

  • 10 impactos de meio físico
  • 9 impactos à fauna e flora
  • 12 impactos socioeconômicos

Total de 10 impactos são considerados significativos

  • 3 positivos: Dinamização do potencial econômico, mercado de trabalho, bens e serviços (fase de instalação); Aumento do potencial econômico local (Operação); e Desenvolvimento de setor especializado (Operação)
  • 7 negativos*: Criação de expectativas negativas, conflitos e insegurança (planejamento); Alteração dos níveis de pressão sonora e vibração (Instalação); Aumento no risco de acidentes (Instalação); Retração de emprego e renda (Instalação); Formação de áreas antropizadas sem resiliência (Instalação); Possibilidade de acidentes por colisão e eletrocussão de avifauna (Operação); Estímulo à migração de trabalhadores (Operação).
    *A maioria dos impactos negativos identificados são de natureza temporária e se concentram na fase de obras, diz o RAS

A grandiosidade do empreendimento

  1. Projeto inicial: Prevê a construção de dois prédios (DC 01 e DC 02), cada um com 100 MW de potência de TI, totalizando 200 MW. Com um fator PUE (Power Usage Effectiveness) de 1.5, a potência total para cada prédio é de 150 MW.
  2. Objetivo final: O projeto conceitual do complexo de Data Centers é de 200MW, dividido em dois prédios, totalizando 300 MW de potência total, com uma área para futuras expansões que poderia levar o complexo a alcançar 600 MW de TI com quatro prédios.
    Fonte: Relatório Ambiental Simplificado (RAS) Data Center Pecém

O desafio para a infraestrutura de transmissão de energia

  • Consumo atual de energia do estado do Ceará: 1,3 GW a 1,5 GW/ano
  • Atual patamar de consumo de energia elétrica juntando todos os data centers em operação no Brasil: 500 MW/ano
  • Projeção de demanda de energia dos projetos de Hidrogênio Verde que possuem pré-contrato com a ZPE: 10 GW/ano
  • Projeção de demanda de energia do data center da Casa dos Ventos na 1ª fase: 300 MW/ano
  • Projeção de demanda de energia do data center da Casa dos Ventos em sua plenitude: 876 MW/ano
    Fonte: SDE/Governo do Ceará/ZPE/Casa dos Ventos

Demanda de água projetada para o data center

  • 1ª fase: 30 m³/dia (O volume é equivalente à demanda média de 72 residências do município de Caucaia - que possui um total de 160 mil unidades consumidoras - ou seja, representaria aproximadamente 0,045% da demanda atual de água da cidade)
    Fonte: Casa dos Ventos/RAS
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