Moradores de conjuntos habitacionais de Fortaleza reivindicam a implantação de um direito básico e assegurado pela Constituição Federal: o de serviço postal. Sem atendimento dos Correios, mais de 100 mil pessoas enfrentam dificuldades para receber correspondências essenciais, como documentos, encomendas e comunicados sobre benefícios sociais.
Diante da ausência, lideranças locais se mobilizam para cobrar a implantação de agências dos Correios nos conjuntos.
O Residencial José Euclides, no bairro Jangurussu, foi inaugurado em 2017 e é um dos que sofrem com a ausência de serviços postais. Com mais de 13 mil moradores, tem uma população maior do que pelo menos 40 municípios do Ceará, de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Morador da região, Paulo Sérgio Farias, que também é coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e das Cozinhas Solidárias, expressa indignação com a falta do serviço no local.
“É como o estepe do carro: você só lembra que precisa dele quando o pneu fura. É assim com os Correios, só percebemos sua importância quando precisamos receber uma correspondência oficial, esperar por uma encomenda ou, por meio do CEP, abrir uma empresa ou fundar uma associação”, diz.
Um dos principais obstáculos ao acesso aos serviços postais é a falta de CEPs individualizados para blocos e apartamentos. O único CEP existente é o do residencial como um todo, o que impede a formalização de endereços específicos no sistema dos Correios.
A arquitetura do residencial também dificulta a operação. “É como se tudo aqui fosse um condomínio fechado, com uma entrada só. Mas sem portaria, segurança, sem estrutura”, conta Sérgio.
Além disso, embora cada um dos 187 blocos tenha recebido uma caixa de correio metálica com compartimentos individuais, as estruturas não seguem os padrões de segurança exigidos pelos Correios.
No local é possível ver que as caixas não têm vedação adequada e não possuem o sistema ideal de entrada frontal e retirada traseira para o interior de uma residência. Muitas já estão danificadas ou destrancadas por falta de uso.
“Como é que alguém instala 187 conjuntos de caixas que não servem para nada? E não foi só aqui, isso é do mesmo jeito em todos os conjuntos habitacionais”, comenta Sérgio Farias.
Para muitos moradores, a falta do serviço postal se transforma em um peso financeiro e emocional. Regina Lúcia Freitas Salustre de Sousa, de 40 anos, vive no residencial desde 2017, quando foi inaugurado. Ela relata que, devido à falta da entrega de correspondências na localidade, já enfrentou transtornos para acessar benefícios sociais.
“O meu cartão do Bolsa Família eu tive que ir buscar lá na Caixa Econômica da Messejana. Era bom a gente receber em casa, como todo mundo, né? Às vezes, dá pra pagar um Uber, mas geralmente a gente vai de ônibus. Porque é caro e tudo é longe”, conta.
A história de Rossicleia Guaiuba da Silva, 46 anos, não é diferente. Moradora do residencial desde sua inauguração, ela também enfrentou obstáculos para acessar seu benefício social.
“Fui procurar meu cartão do Bolsa Família na Caixa da Messejana, mas não estava lá. Fiquei três meses sem receber, porque ia para as agências e não estava”, conta. “Acabei indo no Bom Jardim [agência da Caixa], sem nem saber direito onde era. Fui de ônibus, porque não tenho dinheiro pra Uber. Eu não trabalho. Ai lá eu encontrei, mas foi um sacrifício”.
Moradores relatam que, mesmo com transportadoras privadas, muitos pedidos são cancelados ou devolvidos porque as entregas enfrentam dificuldades de localização e o medo de grupos criminosos afasta os entregadores.
Igor Venceslau, doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), destaca que o serviço dos Correios é garantido pela Constituição de 1988. Atualmente, é a única instituição com presença física em todos os 5.560 municípios brasileiros, com agências próprias e servidores concursados.
“É como um braço logístico do Estado: na entrega de vacinas; na distribuição de livros didáticos nas escolas; toda a operação logística relacionada a avaliações como o Enem, Enade e concursos públicos. Além do do transporte seguro das urnas eletrônicas nas eleições”, aponta.
Ele destaca, no entanto, que ainda há déficits na cobertura dos territórios. “Inclusive em metrópoles, percebemos que há áreas inteiras sem cobertura. O que, geralmente, coincide com outras ausências: falta de infraestrutura, regularização fundiária, saneamento, transporte, etc.”
A falta de um CEP formalizado também prejudica o acesso à saúde e ao emprego. “É uma ausência de acesso a direitos básicos”, constata.
O especialista reflete que é necessário investir na ampliação dos Correios no País. “Nenhuma empresa privada consegue ou se propõe a atuar em todo território. Por isso, é necessário pensar em soluções conjuntas, especialmente entre os Correios e as prefeituras, para a regularização dos endereços. O passo seguinte é discutir com os Correios locais a implantação da entrega domiciliária”, destaca.
Apesar de contar com uma população estimada em 30 mil pessoas, o Residencial Alameda das Palmeiras, no bairro Pedras, também segue sem cobertura dos Correios para entrega de correspondências básicas.
Moradores explicam que um dos fatores que dificulta a entrega de correspondências no local é confusão com os nomes das ruas. Quando o residencial foi entregue, as vias eram identificadas apenas por números: Rua 1, Rua 2, e assim por diante. No entanto, posteriormente, a Prefeitura teria atribuiu nomes oficiais às vias.
“O problema é que muita gente ainda usa os nomes antigos. Tem morador que nem sabe mais em que rua mora. Inclusive, até no GPS é confuso. Então é como se tivéssemos dois endereços”, comenta Cyra Nara, moradora e Agente de Cidadania e Controle Social.
A dona de casa Rafaela Penha, 40, tenta o possível para burlar a dificuldade do acesso a correspondências. “Minha sogra mora na Parangaba, então coloco o endereço dela porque sei que lá chega. Só que, como atualizei meu cadastro do Bolsa Família, agora ele está com meu endereço daqui. E aí o cartão que pedi ainda não chegou”.
Para tentar contornar parte da ausência dos Correios, alguns comércios locais foram cadastrados como pontos de entrega para plataformas como Shopee e Mercado Livre, a partir de um acordo feito diretamente com as plataformas.
“Hoje temos quatro pontos na primeira etapa e dois na segunda. Mas isso resolve só para compras. Não resolve para um cartão, uma correspondência judicial, por exemplo”, diz Nara.
Renato Pequeno, professor do Instituto de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab/UFC), contextualiza que os grandes conjuntos como o José Euclides surgiram após uma mudança na lei do programa "Minha Casa, Minha Vida".
“Quando foi lançado, em 2009, o programa previa conjuntos de até 500 unidades, justamente para que fossem implantados em áreas com infraestrutura urbana. Mas a legislação foi alterada em 2011, permitindo até 5.000 unidades por conjunto. E terrenos com essa escala só existem na periferia da cidade, onde não há equipamentos sociais nem serviços públicos”, explica.
Com isso, Fortaleza passou a deslocar moradores de baixa renda, muitos vindos de áreas de risco, para regiões classificadas pelo próprio Plano Diretor como “zonas de ocupação restrita”, onde esse tipo de moradia originalmente não poderia ser construído.
Entre 2011 e 2021, Fortaleza recebeu 32 conjuntos habitacionais, principalmente na região sul. Os maiores são: Cidade Jardim 2 (5.968 unidades), Alameda das Palmeiras (4.992), José Euclides (2.992), Cidade Jardim 1 (2.944), Escritores (1.920), Luiz Gonzaga (1.760) e Aldemir (612).
“Para viabilizar os empreendimentos, a Câmara Municipal alterou o Plano Diretor. O resultado é que hoje temos quase 100 mil pessoas vivendo sem o amparo efetivo do poder público, em bairros onde o Estado chega muito lentamente”, avalia Renato.
Para solucionar o problema da falta de Correios, pelo menos desde 2023 a comunidade do Residencial José Euclides idealiza um projeto para implantar a primeira Agência Comunitária Urbana dos Correios em Fortaleza.
Conforme publicado pelo O POVO, no mesmo ano a Prefeitura foi notificada e informou a criação de um Grupo de Trabalho (GT) para avaliar a viabilidade da iniciativa. Dois anos depois, contudo, os planos não saíram do papel.
“A ideia é que a agência funcione como uma empresa comunitária. Os trabalhadores que atuarem aqui são os mesmos que moram na comunidadei”, explica Sérgio Fárias, coordenador do MTST.
Para ele, além de garantir empregos, isso permite que o serviço funcione com mais segurança e eficiência, uma vez que os próprios moradores conhecem as particularidades do território.
A agência também funcionaria como um centro logístico para encomendas de plataformas como Shopee, Amazon e Mercado Livre.
Sérgio defende que a ideia poderia ser expandida para outros conjuntos habitacionais. “Desde que respeitadas as características locais. Em alguns lugares, uma pessoa de uma quadra não anda na quadra ao lado. Então, vai ser a própria comunidade que vai escolher como carteiro alguém que melhor entende da área”, explica.
A ideia é bem vista por outros residenciais. “Se funcionar no Euclides, queremos trazer para cá também. Porque não dá mais pra viver nessa espécie de apagão postal que ignora nossos direitos básicos”, diz Cyra Nara, do Alameda das Palmeiras.
Segundo os Correios, em reunião com representante da comunidade, foi apresentada como alternativa a implantação de uma unidade do Correios Essencial. “Trata-se de um modelo simplificado de agência, voltado para a prestação de serviços postais básico, viabilizado por meio de parcerias com entes públicos, como prefeituras e câmaras municipais”, explicou o órgão.
Jonas Dezidoro, secretário Municipal de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), reconhece que a questão foi apresentada à Prefeitura logo no início da nova gestão, mas que falhas na transição de governos, como repasse de dados, atrasaram as ações.
O secretário informou que foi realizada uma reunião no dia 25 de junho com a Prefeitura de Fortaleza, os Correios e o Governo do Estado. “Discutimos algumas soluções e, entre elas, a mais viável foi o programa que os Correios já possuem, o Correios Essencial”, destacou.
Não foi informado uma previsão para a implementação. “O que vamos fazer agora é abrir diálogo com os representantes dos moradores, para tentarmos definir um local adequado para a instalação da unidade do Correios Essencial. A partir disso, iniciamos os trâmites para viabilizar a agência”, disse Dezidoro.
O secretário também pontuou que, na mesma semana, se reuniu com a vice-governadora Jade Romero, à frente da Secretaria da Proteção Social, para discutir ações de retomada do diálogo com moradores dos residenciais.
“Tratamos, inclusive, do Zona Viva [espaço que oferta atividades de qualificação profissional, cultura, esporte e lazer]. Pensamos em viabilizar algumas ações dentro dos residenciais, principalmente nos mais antigos e maiores", concluiu.
Nos residenciais, a dificuldade de receber correspondências é apenas um dos diversos problemas. No Alameda das Palmeiras, por exemplo, faltam escolas de ensino médio. Segundo levantamento de moradores, há cerca de 3.800 adolescentes em idade escolar no conjunto. Destes, 75% estudam longe, como no Liceu da Messejana, e 25% estão fora da escola ou não frequentam mais.
Questionada sobre isso, a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc) declarou que estão previstas 138 escolas para ampliação do Tempo Integral na rede pública estadual e uma das unidades de ensino irá atender aos alunos do Residencial Alameda das Palmeiras.
“Com modelo vertical, a escola contará com três pavimentos e 12 salas de aula, 04 laboratórios, biblioteca, auditório, quadra poliesportiva, entre outros espaços. Os ambientes internos serão climatizados”, diz. Segundo a pasta, o processo de licitação está em fase de homologação. A Ordem de Serviço deve ser emitida no segundo semestre.