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Mobilidade: os entraves enfrentados por PCDs para locomoção em Fortaleza
Reportagem

Mobilidade: os entraves enfrentados por PCDs para locomoção em Fortaleza

Usuários apontam dificuldades físicas e burocráticas para usar transporte coletivo na Capital; carros por aplicativo surgem como saída, mas também possuem barreiras. Etufor esclarece que faz vistorias semestrais nos veículos
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Carlos Eduardo é cadeirante e precisa se deslocar de ônibus com a mãe (Foto: Daniel Galber - Especial para O Povo)
Foto: Daniel Galber - Especial para O Povo Carlos Eduardo é cadeirante e precisa se deslocar de ônibus com a mãe

“Eu poderia sair daqui para a faculdade pegando um ônibus só. Uma topic, no caso. Seria a 10. Só que na maioria os motoristas falam que está quebrado, que não dá pra levar. Aí acabo indo pelo terminal. [Pego] Dois ônibus para chegar à faculdade”. Essa é a rotina de Luciano Alves, 21, cadeirante e usuário do transporte coletivo de Fortaleza. Um trajeto que poderia ser mais veloz e menos cansativo, hoje exige o dobro de tempo e esforço, por falhas na acessibilidade.

O “quebrado” a que ele se refere são os elevadores, peça fundamental para o acesso de cadeirantes aos ônibus. Obrigatórios por lei desde o ano 2000, e regulamentados com base nos parâmetros da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), os equipamentos são alvos de críticas por usuários na Capital, que alegam recorrentes defeitos.

Conforme Luciano, a dificuldade de entrar no ônibus ocorre com frequência. O estudante de Design na Universidade Federal do Ceará (UFC) conta que já perdeu compromissos porque precisou esperar um ônibus com o equipamento em bom estado.

“No José Bastos [no caso, a linha 350, que liga o terminal da Lagoa à avenida José Bastos] em específico, é uma sorte você conseguir pegar um que não esteja com o elevador quebrado. Tem essa demora a mais por conta disso”, conta.

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Passado o desafio de entrar no ônibus, surge uma nova barreira, a de se manter seguro nele. Além dos elevadores, os cintos que devem garantir a estabilidade das cadeiras de rodas durante a viagem também são alvo de críticas dos passageiros com a deficiência motora.

Com defeitos nas travas, parte dos equipamentos não dão a firmeza necessária, podendo causar eventuais acidentes com os cadeirantes e demais passageiros. Junto a isso surgem também reclamações de descaso dos motoristas, o que resulta em relatos de insegurança e abandono.

Esse foi o caso de Maria Cristiany, 44, que acompanha o filho Carlos Eduardo, 12, cadeirante, nos coletivos da Cidade. No dia 1° de abril, mãe e filho estavam na linha 029 - Parangaba/Náutico, voltando do treino de natação de Carlos, que é atleta paralímpico juvenil, quando Cristiany caiu ao tentar segurar a cadeira do filho.

Ferida, ela foi auxiliada por passageiros a descer do ônibus junto ao filho para respirar e tentar ver o grau do ferimento. Quando tentou retornar ao coletivo, a técnica de enfermagem conta que eles já haviam sido deixados para trás.

“Saí do ônibus para respirar. Quando pensei que ele ia me dar o socorro, o motorista foi embora. Eu fiquei com minha perna sangrando, inchada, sem nenhum apoio para levar meu filho para casa. Chorei muito. Me senti muito humilhada”, relembra Cristiany.

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As dificuldades se estendem também para outros tipos de deficiência. Rayane Magalhães, 30, também passageira dos ônibus, tem problemas de locomoção desde a infância, causados por uma paralisia cerebral.

Com dificuldades para ficar de pé, a gestora esportiva diz passar por situações incômodas dentro dos veículos, em especial quando os passageiros relutam em ceder as cadeiras amarelas, prioritárias para pessoas com mobilidade reduzida, conforme a Lei Federal N°10.048/2000.

Comentários e reclamações ouvidos por ela são apenas uma parte do problema, já que se não for sentada, Rayane corre o risco de cair e ter uma lesão grave.

Assim como Cristiany, a também nadadora soma experiências ruins por causa da pressa dos condutores. A correria implica dificuldades até para sentar, já que com uma locomoção mais lenta, demora alguns segundos a mais para chegar nos bancos.

“Raras as exceções que eu encontro motoristas que conseguem ter empatia. Até mesmo para sentar dentro do ônibus. Por exemplo, eu subi no ônibus e tem uma cadeira vaga para mim lá. O percurso de eu subir e me sentar, eles não esperam. Simplesmente saem andando. O risco de eu cair ali já aconteceu. Não cheguei a cair, mas já aconteceu de quase”, comenta.

O POVO questionou a Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etutor), sobre os dispositivos de acessibilidade dos ônibus que circulam em Fortaleza.

Em resposta, a empresa afirmou que 100% da frota possui elevador e botões em braile, e que realiza vistorias semestrais nos veículos que estão até 7 anos em circulação, e a cada três meses naqueles que rodam a mais tempo que isso. Conforme dados da pasta, 11.360 fiscalizações de elevador foram feitas entre janeiro e abril deste ano, das quais 97,7% resultaram em aprovação.

Segundo a Etufor, falhas como as relatadas por Rayane, Luciano e Cristiany podem ser reclamadas junto a fiscais nos terminais, no telefone da Ouvidoria da pasta (3771.6620) ou na central 156, que concentra demandas da população sobre serviços da Prefeitura.

Comprovadas as avarias dos equipamentos, as concessionárias têm 24 horas para repará-los. Em caso de não correção, o ônibus fica proibido de circular e deverá ser substituído por uma unidade da frota reserva.

“A gente faz a vistoria de todos os quesitos de conforto e segurança do veículo. Então toda a parte de acessibilidade, elevadores, essa questão dos botões em braile, também itens de segurança como pneus, para-brisas, limpadores de para-brisas, faróis, se tem algum banco solto… tudo isso é vistoriado”, explica o presidente da Etufor, George Dantas.

Fortaleza estuda renovação de gratuidades online

Fortaleza possui cerca de 246 mil Pessoas com Deficiência (PCDs), conforme dados do Instituto de Pesquisa e Planejamento de Fortaleza (Ipplan). Destes, em torno de 52 mil (21%) dispõem do cartão gratuidade, que isenta PCDs de pagarem passagem na Cidade.

Entre as principais demandas dos usuários está a renovação do cartão gratuidade. Até 2024, o documento precisava ser atualizado anualmente, o que gerava constantes incômodos entre os usuários.

Isso porque, apesar de possuírem deficiências permanentes, o cartão gratuidade feito pelos usuários do transporte coletivo tinha validade de apenas 12 meses, conforme disposto na Lei Municipal N°0057/2008, que legisla o benefício em Fortaleza.

A gratuidade é classificada de acordo com a necessidade de ajuda do usuário para a locomoção. Pessoas que conseguem se utilizar os transportes sozinhas recebem a carteira amarela, que dá direito a uma passagem, enquanto as que necessitam de acompanhante ganham a vermelha, que concede a isenção de dois bilhetes.

Passado o período de um ano, era necessário fazer novos exames, emitir um novo laudo, reunir toda a documentação necessária e levar presencialmente à sede da Etufor, sob o risco de ter o benefício bloqueado caso não realizasse todo o trâmite.

"A gente faz esse processo todo ano para renovar, porque senão a gente perde o acesso. Uma vez bloqueou e o motorista me obrigou a pagar a minha passagem porque eu estava com a carteirinha bloqueada", relata Maria Cristiany, que acompanha o filho cadeirante nos treinos de natação.

A renovação anual deixou de ser necessária em 2024, após uma recomendação do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) para a extensão do prazo de validade dos benefícios. Desde agosto, os cartões de pessoas com deficiências irreversíveis só precisam ser renovados após cinco anos de uso.

O próximo passo para tornar esse serviço mais prático deverá ser a possibildiade de que renovação seja feita online, também a cada cinco anos. A implementação da medida está sendo estudada pela Etufor junto à Secretaria Municipal da Saúde (SMS) e outros órgãos da gestão de Fortaleza.

No último dia 9 de maio, uma reunião entre representantes da Empresa de Transporte Urbano e da Procuradoria Geral do Município (PGM) foi realizada para discutir quais as atualizações necessárias na legislação para que a medida seja implementada.

"Obviamente ainda é cedo para falar alguma coisa, mas estamos estudando, em contato inclusive com a Secretaria de Saúde, a possibilidade de as gratuidades de deficiência permanente, que ele só tenha que fazer a prova de vida de forma virtual. Não precisaria mais ele de cinco em cinco anos fazer o laudo médico e essa coisa toda, já que a deficiência dele é permanente, e ele faria isso de forma virtual", explica George Dantas, presidente da Etufor.

Os detalhes de como será feita a renovação ainda estão sendo elaborados, mas conforme a Empresa, o processo deverá ser similar à renovação das carteiras de Identidade Estudantil e da Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (CIPTEA). Os documentos garantem isenção de passagem aos seus portadores e são renovadas online, através do site da Prefeitura.

Após a elaboração, o projeto deverá ser enviado à Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor) como forma de mensagem do poder executivo, para ser votado pelos vereadores. A previsão inicial é de que a renovação online passe a funcionar ainda este ano.

Para a docente do Departamento de Engenharia de Transportes da UFC, Nádia Khaled, ações como a implementação do cartão gratuidade e das carteiras de identificação, bem como a renovação menos burocrática deles, têm representado avanços nas políticas de acessibilidade da Capital.

"As políticas públicas de Fortaleza voltadas para o transporte de pessoas com deficiência têm contribuído significativamente para a melhoria da qualidade de vida desse grupo, promovendo inclusão, autonomia e respeito. A continuidade e o aprimoramento dessas ações são essenciais para construir uma cidade mais acessível e justa para todos", acrescenta a também pesquisadora em acessibilidade e doutora em Ciência e Engenharia de Materiais.

FORTALEZA-CE, BRASIL, 19-02-2025: Acessibilidade nas univerdades. Na foto, Lucas Vieira, estudante de Jornalismo, pessoas cega e com mobilidade reduzida. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)
FORTALEZA-CE, BRASIL, 19-02-2025: Acessibilidade nas univerdades. Na foto, Lucas Vieira, estudante de Jornalismo, pessoas cega e com mobilidade reduzida. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

Apps surgem como saída, mas também apresentam problemas de acessibilidade e preconceito

Se o transporte público não apresenta todos os recursos necessários para PCDs, a saída mais lógica é recorrer ao particular. Hoje, carros e motos por aplicativo são a primeira opção desses usuários quando o acesso aos ônibus se torna oneroso.

Entretanto, plataformas como a Uber e a 99, duas principais atuantes em Fortaleza, mantêm em muitos casos as mesmas complicações encontradas nos coletivos. Quem conhece bem esse cenário são Lucas Vieira, 28, deficiente visual; e Suellen Anjos, 26, cadeirante, que deixaram de andar de ônibus para usar os aplicativos.

Ambos foram personagens de matéria d'O POVO sobre a falta de acessibilidade nos ônibus, publicada em agosto de 2024. Se à época o relato era de descaso dos motoristas e demora nos itinerários, hoje o cenário não é muito diferente.

Suellen relata que por vezes já teve que pedir várias corridas para conseguir alguém que a levasse. A usuária conta que no momento em que o motorista aceita a solicitação, ela avisa que é cadeirante e questiona se o carro tem espaço para a cadeira de rodas. É nesse momento que muitos cancelam a viagem, sem nem responder à pergunta.

Quando aceitam a corrida, o trajeto também pode ser incômodo devido à falta de preparo dos condutores. Lucas anda de moto desde a infância e, em 2021, começou a usar Uber e 99 moto para se locomover na cidade.

Em todo esse tempo de uso, ele afirma já ter sido vítima de capacitismo várias vezes, inclusive com motociclistas que não queriam levá-lo na viagem por duvidarem se ele conseguiria se segurar na moto.

Além disso, também são recorrentes as perguntas invasivas dos condutores, querendo saber se sofreu algum acidente para perder a visão, como consegue distinguir os lugares que vai e questões de cunho pessoal.

"Tem dias que eu fico realmente chateado com esse tipo de situação porque às vezes você se sente na obrigação de aceitar certas coisas que acontecem", conta o estudante de Jornalismo na UFC.

O POVO questionou a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa a Uber e a 99, dentre outras plataformas, sobre as medidas adotadas para a acessibilidade dos passageiros. Em nota, a entidade afirmou que as plataformas realizam treinamento dos motoristas e que ações como as citadas pelos personagens devem ser reportadas via aplicativo.

"As plataformas disponibilizam conteúdos educativos e orientam os motoristas parceiros para que cumpram as leis vigentes em relação ao transporte de pessoas com deficiência. Eventuais comportamentos discriminatórios durante as viagens contrariam os termos de uso e, portanto, são possíveis das sanções previstas, podendo chegar ao banimento da conta. Os usuários que passarem por qualquer tipo de discriminação podem reportar ao suporte do aplicativo, que irá analisar o caso", expplicou em nota.

No que diz respeito a Uber, em especial, a associalão foi questionada sobre o Uber Access, serviço específico para clientes com algum tipo de deficiência, que dispõe de carros mais espaçosos e motoristas que já se predispõem a levar passageiros PCDs e já disponível em países como Chile, Portugal e Inglaterra, mas sem previsão de chegada ao Brasil. Nenhuma resposta sobre a ferramenta ou prazo de chegada ao Brasil foi enviada.

Número de cartões cadastrados

Múltiplo - 1.711

Auditivo - 2.798

Visual - 3.057

Deficiência Física - 11.083

Mental/Intelectual - 34.285

Fonte: Etufor

 

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