Em meio às ameaças promovidas pelo governo dos Estados Unidos contra o Brasil de sobretaxa de 50% aos produtos nacionais que chegam ao país, o sistema brasileiro de pagamento instantâneo, o Pix, tornou-se outro ponto de tensão. Ele virou alvo de uma investigação de abuso comercial por parte dos Estados Unidos, com base numa legislação americana dos anos 1970.
A resposta por escrito ao Estado americano será realizada até o dia 18 de agosto, com audiência pública em Washington marcada para o dia 3 de setembro. Nas redes sociais, para defender o Pix, o Governo Federal fez publicação com o dizer: "O Pix é nosso, my friend", em referência ao caso.
Sim, os EUA abriu uma investigação sobre um bem nacional brasileiro, com base numa legislação doméstica, para levantar informações e verificar se houve intenção de prejudicar empresas americanas. Se identificarem, há possíveis punições, como aumentar a taxação de 50% já cogitada por Donald Trump.
O processo é conduzido pelo Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR), órgão do governo americano responsável por lidar com as relações e coordenar as políticas comerciais internacionais. Mas o questionamento geral que fica é por qual razão o Pix se tornou alvo? O POVO consultou especialistas que destacam um caráter político e falta de clareza nas informações que motivaram as investigações. Mas, o sucesso do Pix não deve ser prejudicado.
A Seção 301 da Lei Comercial de 1974 permite a USTR investigar e retaliar nações que adotem práticas comerciais consideradas injustas ou discriminatórias.
Eles questionam um suposto "favorecimento" do Pix, um sistema de pagamentos instantâneo criado pelo Banco Central do Brasil (Bacen), em detrimento de empresas de tecnologia e de serviços de pagamento dos EUA.
Em resposta, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) avaliou que há informações incompletas acerca dos objetivos e funcionamentos do Pix. A entidade espera que o período de audiência pública, com participação do Bacen, de integrantes do sistema bancário brasileiro, incluindo bancos americanos, vai ajudar no esclarecimento das restrições levantadas.
"O Pix é uma infraestrutura pública de pagamento, e não um produto comercial, que favorece a competição e o bom funcionamento do sistema de pagamentos e consequentemente da atividade econômica, sendo um modelo aberto e não discriminatório, com participação de bancos, fintechs e instituições nacionais e estrangeiras. Portanto, não há qualquer restrição à entrada de novos participantes", diz a Febraban, em nota.
Em 2024, 208,2 bilhões de transações foram feitas por brasileiros por meio dos diferentes canais de atendimento das instituições financeiras, alta de 8% em relação ao ano anterior. Desse montante, 75% foram realizadas pelo celular. Se somar isso ao internet banking, o percentual chega a 82%.
Neste ano, os bancos deverão investir cerca de R$ 47,8 bilhões em tecnologia para oferta de produtos e serviços, sendo 10% voltados para a cibersegurança.
Dentro desse escopo, entra o Pix. Dentre mais de 168 milhões de usuários (praticamente toda a população adulta), mais de 70 milhões estão digitalizados pelo Pix. São R$ 2,5 trilhões movimentados por mês, em cerca de 6,5 bilhões de transações. Atualmente, o sistema já conta com mais de 858 milhões de chaves Pix cadastradas.
Igor Machado, advogado do escritório Meirelles da Costa Advogados, avalia que a investigação é uma imposição da ideia de livre mercado dos Estados Unidos, uma espécie de reciprocidade econômica em proteção aos produtos e serviços "exportados" por eles.
Para ele, o efeito do Pix na sociedade brasileira gerou a diminuição da concentração que havia nas bandeiras de operações de crédito e débito, geridas por empresas americanas em sua maioria. Mas, o objetivo do sistema não é esse.
"O sistema bancário brasileiro é uma grande referência internacional em termos de tecnologia, de capacidade de processamento e de informatização. O Pix tem uma função muito importante de bancarização, de formalização da economia e, consequentemente, maior movimentação econômica", afirma Igor, que entende que a perda de espaço das empresas americanas é por motivos concorrenciais.
O potencial do Pix é elogiado pelo Prêmio Nobel de Economia de 2008, Paul Krugman, que publicou o artigo "O Brasil inventou o futuro do dinheiro? E será que chegará para os EUA?", em que aponta as resistências dos americanos na adoção de um sistema semelhante e em como ele faz sucesso no Brasil.
O economista ainda ressalta o baixo custo do Pix de 0,33% do valor da transação, contra 1,13% para cartões de débito e 2,34% para os de crédito, além de liquidar operações em três segundos. "Outras nações podem aprender com o sucesso no desenvolvimento de um sistema de pagamento digital. Mas os EUA, provavelmente, permanecerão presos a uma combinação de interesses pessoais e fantasias com criptomoedas."
Vivaldo José Breternitz, doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo e consultor nas áreas de Sistemas e Tecnologia da Informação, entende que a relação entre a investigação sobre o Pix e o fato de o Banco Central ter impedido, em 2020, a implantação inicial do WhatsApp Pay, não se sustenta.
Ele observa que, nem nos EUA, a ferramenta teve grande sucesso e que, mesmo sob ataque, o Pix é mais adaptável ao que quer o mercado e o público.
"O WhatsApp Pay não teve grande sucesso por razões culturais - o próprio app de mensagens original é relativamente pouco usado por lá. Mas ferramentas como o Pix são um exemplo clássico de "Destruição Criativa, como nos disse (Joseph) Schumpeter (importante economista) e, logo, serão universalmente adotadas", aponta.
Ainda segundo Vivaldo, as perdas de "faturamento" de empresas como Visa e Mastercard por conta do menor uso de cartões de crédito "não são relevantes para gerarem reações do governo americano", ainda mais porque as companhias de lá se beneficiam do Pix.
Vai chegar o momento em que os países irão copiar a solução.
Sobre a possibilidade de sanções contra o Brasil por causa do Pix, o presidente da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs), Diego Perez, entende que o sistema já está na rotina dos brasileiros e vem ganhando novas funcionalidades com o tempo. Por isso, é muito difícil um retrocesso, "especialmente por ação de um país que não tem jurisdição sobre os desenvolvimentos internos do Brasil".
Para ele, o pior cenário pode envolver impactos indiretos, como empresas americanas deixarem de usar o Pix como meio de pagamento, por exemplo. Ainda assim, seria limitado. "Como o mercado brasileiro é o principal foco e há muitos agentes nacionais sem participação de capital estrangeiro, acredito que o impacto seria imperceptível. Isso se houver alguma restrição - o que ainda é uma incógnita".
Ainda assim, Diego destaca que o Brasil deve priorizar a participação com argumentos técnicos no USTR, a fim de evitar sanções. Dentro desse contexto, a ABFintechs irá contribuir com o governo brasileiro.
O avanço do Pix ocorre em meio à expansão do chamado Sistema de Pagamentos Brasileiro, sancionado em 2013, que possibilitou a criação das fintechs. Hoje são mais de 1,6 mil instituições financeiras de base tecnológica, que contribuem com soluções que facilitam a inserção do Pix como método preferido de pagamentos.
O Brasil hoje representa 58% do total de fintechs da América Latina. As startups de meios de pagamentos são 308, segundo tipo em número, atrás somente de especialistas em crédito (323). Foi também a vertical que mais cresceu em 2024, com 30,7%, segundo a ABFintechs.
A multiplicidade de empresas inovadoras com viés tecnológico no setor financeiro tem permitido ao Brasil acelerar com avanços. Ricardo Marson, superintendente executivo de produtos da Getnet - empresa brasileira de pagamentos que atua com adquirência, destaca que o mercado se transformou a ponto de não ser mais restrito à atuação como fornecedora de maquininhas, mas como um hub de serviços.
Na prática, empresas adquirentes são as responsáveis pelo processamento das transações realizadas com cartões de crédito e débito, conectando o estabelecimento comercial, a bandeira do cartão e o banco emissor que vai “efetuar o pagamento” a compra. Tornar a jornada de pagamento mais fluida e veloz é sua função.
Para Getnet, além da boa relação com bandeiras de cartões, como Visa, Mastercard e Elo, possuir soluções que envolvam o Pix é fundamental.
Neste ano, a empresa lançou, em parceria com o Santander, o Pix por Aproximação (com solução NFC na hora da transação), que permite pagamento sem contato na maquininha, eliminando o atrito de ler o QR Code. "Diante da dominância do Pix, que já é o meio de pagamento mais utilizado por 83% dos brasileiros, atuar com essa tecnologia deixou de ser uma opção para as empresas."
"Trata-se de uma nova e fundamental demanda de mercado, e estar na vanguarda de suas evoluções é uma necessidade estratégica para se manter relevante e competitivo", afirma Ricardo.
Lojistas internacionais atentos à demanda por Pix de turistas
Maior banco de câmbio do Brasil em volume de dólares transacionados, segundo o Banco Central, o Braza Bank tem entre suas soluções de pagamentos a inclusão do Pix como opção aos consumidores brasileiros no Exterior.
A ferramenta é chamada Checkout e é instalada em estabelecimentos físicos ou online e permite que clientes brasileiros paguem suas compras ou serviços com métodos nacionais, como o Pix. O Braza calcula uma economia de 60% a 85% nas taxas de operação em comparação com os cartões convencionais.
Marcelo Sá, diretor de Negócios do Grupo Braza, explica que a ferramenta permite ao estabelecimento parceiro receber em sua conta o valor da venda já convertido para sua moeda local em menos de um minuto. Isso tem feito com que ocorra um crescimento no número de parceiros, com presença no Paraguai, Portugal, Itália, Estados Unidos, Argentina, Uruguai, Bolívia.
Fundado em 2007, pelo brasileiro Marcelo Sacomori, na Inglaterra, como uma instituição financeira emissora de moeda eletrônica e sistemas de pagamentos em massa - que é quando o crédito é feito em real e convertido em moeda estrangeira automaticamente - o grupo planeja expansão.
"A presença brasileira em outros países deve facilitar a expansão. Potencial sempre há (ampliar o serviço para outros continentes). Quando começamos a desenvolver o produto, pensamos no brasileiro turista, mas é curioso como ele passou a ter aderência do brasileiro residente", aponta.
Esse movimento ocorre porque as comunidades brasileiras mantêm vínculos com o sistema financeiro brasileiro, recebem aposentadorias, têm acesso ao Pix. Marcelo destaca que na União Europeia existem grandes comunidades brasileiras em países como França, Alemanha, Itália e Holanda, além de outros locais onde o turismo tem crescido, como Dubai.
Para acessar outros continentes, a empresa aposta em parceria com bancos nacionais. Após o acontecimento do Brexit, o acesso à UE ficou restrito e hoje se dá por meio de parceria com o banco português Unicre. No Paraguai, a parceria é com o Banco Solar. "Isso resolve questões regulatórias e de escalabilidade".
O Braza não divulga quantos lojistas parceiros possui, mas revela que Pix se tornou a opção em quase 50% das transações. Em Portugal, a solução começou neste ano, mas há casos de lojas em que o Pix já representa 30% do faturamento vindo de brasileiros.
Sobre a investigação dos Estados Unidos, compara com outras soluções de pagamentos instantâneas. Como os próprios americanos têm, no FedNow, que enfrenta restrições regulatórias nos estados, que Portugal tem, com o MB Way, mas que é uma solução privada.
"É aquele ditado: falem bem ou mal, falem de mim. O Pix virou notícia. Independentemente de questões políticas, o Pix é um caso de sucesso. Virou o que chama de account-to-account, ou seja, pagamento direto entre contas. Retirou intermediários, simplificou, democratizou", complementa.
A chegada aos EUA com grandes varejistas
A Verifone, uma das principais empresas de adquirência nos Estados Unidos, confirmou acordo com a fintech brasileira PagBrasil para aceitar Pix em suas maquininhas de pagamento. Essa é a primeira vez que uma rede desse tipo adere ao sistema entre os seus varejistas credenciados.
Alex Hoffmann, cofundador da PagBrasil, destaca que o acordo aconteceu num "timing" que coincide com as investigações do governo americano, considerado por ele uma "feliz coincidência".
"Nós vemos essa investigação positivamente, porque é um reconhecimento da qualidade e relevância do Pix. Não temos receio, o Pix é imparável e não é um canetaço que vai mudar isso", afirma.
O serviço de Pix Internacional pela empresa começou em 2023 e já está em países da América do Sul e Europa, mas já havia negociação, com a Verifone, para iniciar a operação nos Estados Unidos, em lojas físicas. A tendência, segundo ele, é o Pix se tornar o equivalente a uma bandeira de cartão.
A Verifone é a maior adquirente dos EUA, em parceria com 75% dos maiores lojistas e processa US$ 8 trilhões por ano. "Agora, todos os pontos de venda que já aceitavam cartão de crédito, terão a opção de pagamento por Pix para que brasileiros possam pagar por QR Code."
Ele explica que neste tipo de operação o consumidor tem mais informações sobre o custo das taxas e não precisa se preocupar em fazer conversão, que será automática.
"Começamos no Uruguai, país em que, no Réveillon, 80% dos estrangeiros são brasileiros. É onde estamos mais capilarizados. As pessoas pagam táxi, restaurante, hotel, até condomínio", conta.
Depois, a expansão ocorreu na Argentina, Chile, Portugal, Holanda e México. "Estados Unidos foram uma negociação mais demorada, porque o país é muito maior. A Verifone é uma empresa muito grande, mas o potencial é gigante pelo número de turistas brasileiro que vão ao país todos os anos".
AVANÇO DO PIX NA PREFERÊNCIA DO CONSUMIDOR BRASILEIRO
52%: Foi o crescimento da quantidade de transações por Pix no Brasil em 2024