Logo O POVO+
Proibição do uso de celular cria novo ambiente para além das escolas
Reportagem

Proibição do uso de celular cria novo ambiente para além das escolas

| oito meses| Unidades de ensino passaram a ofertar maior gama de atividades para entreter os alunos durante os intervalos; estudantes afirmam usar menos os celulares mesmo fora do colégio
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Luciana Lima, professora de Educação Física em atividade com alunas do 8º ano EMTI Maria Odete da Silva Colares
 (Foto: DANIEL GALBER/ESPECIAL PARA O POVO)
Foto: DANIEL GALBER/ESPECIAL PARA O POVO Luciana Lima, professora de Educação Física em atividade com alunas do 8º ano EMTI Maria Odete da Silva Colares

Passados oito meses desde a assinatura da Lei Federal 15.100/25, que restringe o uso de celulares nas unidades de ensino no País, as escolas têm investido em alternativas para retirar os alunos das telas. Uma das medidas mais recorrentes tem sido a implementação de projetos que promovem a interação entre os alunos, como grupos esportivos, musicais, de dança e leitura.

As atividades ocorrem durante os intervalos, para incentivar os alunos a compartilharem momentos com os colegas e deixarem o telefone de lado. Como o uso dentro de sala já era naturalmente restringido pelos professores, o espaço entre aulas passou a ser visto por muitos como um momento de escape para acessar redes sociais, jogos online e outras ferramentas no smartphone.

Pensando nisso, as escolas decidiram reverter essa situação preenchendo os chamados “recreios” com vastas gamas de atividades, por vezes sugeridas pelos próprios alunos. Os resultados já estão sendo vistos no dia a dia das instituições, com novo ambiente, maiores movimentações nos pátios, quadras e bibliotecas.

“Os projetos na hora do almoço já existiam, mas eram projetos mais à vontade. O aluno ia se sentisse vontade. Hoje a gente percebe que houve um aumento na participação. Eles se sentiram mais cativados pelos projetos [após a restrição]”, conta Marta Correia, diretora da EEEP Joaquim Moreira de Sousa, do bairro Messejana, em Fortaleza.

Além de entreter e distanciar os alunos dos celulares, projetos como os citados por Marta têm contribuído para a formação multidisciplinar no ensino básico. Um bom exemplo disso está na EMTI Maria Odete da Silva Colares, na Parangaba, que originou a própria banda a partir de um projeto desenvolvido nos intervalos das aulas.

A iniciativa nasceu há dois anos, onde professores, que também são músicos, se disponibilizam para ensinar e ensaiar com os estudantes durante os recreios. Além do lado artístico, os docentes apontam que o projeto tem desenvolvido competências como responsabilidade, sociabilidade e companheirismo nos alunos.

“A gente gosta de observar que eles estão tendo uma postura mais respeitosa, tendo um cuidado maior. Quando ele constrói a cultura do cuidado com os instrumentos, ele leva esse cultura para a sala de aula. Vai cuidar melhor do material escolar, dos espaços da escola… A gente percebe muito esse ganho. Eles correm tanto para tocar bem quanto para não ter nenhuma ocorrência”, relata Leonardo Vieira, professor de história e instrutor da banda da escola.

Mesmo quem se integrou aos projetos há menos tempo já consegue colher resultados no dia a dia escolar. A escola Canarinho Sapiens, por exemplo, no bairro Aldeota, realiza intervalos interativos com os alunos desde 2024, após perceber que muitos preferiam ficar no celular ao invés de brincar com os colegas.

O fomento da ideia surgiu após reuniões com alunos sobre o que a escola poderia ofertar para que eles deixassem o smartphone de lado no recreio. Entre as propostas surgiram jogos de dança, karaokês, tabuleiros e outras atividades que ganharam o gosto dos estudantes.

Chamada de “Curta o Pátio”, a iniciativa ocorria inicialmente apenas nas sextas-feiras, mas devido ao sucesso, levou os alunos a buscarem os jogos também em outros dias da semana.

“Se eles queriam jogar um jogo de tabuleiro eles não esperavam só a sexta-feira. Na quarta-feira, por exemplo, estavam na biblioteca pegando. Quando entrou em vigor a lei, em 2025, a gente talvez não tenha enfrentado a mesma resistência que outras escolas enfrentaram por causa dessa preparação”, afirma Tarcila Freitas, diretora do Canarinho Sapiens.

A bateria do celular pode ser destruída por recursos que o usuário dificilmente utiliza.
A bateria do celular pode ser destruída por recursos que o usuário dificilmente utiliza.

Alunos têm usado menos os celulares mesmo fora da sala de aula

Em vigor há apenas oito meses, a restrição total do uso de celulares já tem alcançado resultados para além do muro escolar. Acostumados a não tocar nos aparelhos enquanto estão na escola, muitos estudantes afirmam já não sentir mais a necessidade de estar sempre com os telefones nas mãos, mesmo quando estão em casa ou em locais públicos.

Foi isso o que aconteceu com Anna Débora Parente, 17, aluna do 3° ano da EEEP Joaquim Moreira, que no início até sentiu falta de se dedicar a redes sociais e aplicativos de música, mas que com o passar do tempo "só lembrava dele quando ia para casa", conta.

Sem a distração eletrônica nos intervalos, ela e os colegas passaram a frequentar mais os espaços da escola, como quadra e biblioteca. Fora da EEEP, os benefícios podem ser vistos em um maiores níveis de atenção e zelo.

"Comecei a procrastinar menos. Pensava: 'Já passei o dia inteiro sem celular, qual o problema de um tempo a menos?'. Chego e vou realizar as atividades, tanto da escola quanto de casa. Comecei a ser mais organizada em casa também. Meu quarto começou a ser mais limpo, organizado… só pego o celular lá pelas 20 horas", detalha.

Para quem estuda em tempo integral, como Anna, tamanho desprendimento leva quase a uma estranheza com os smartphones. Isadora Rodrigues, 14, por exemplo, estuda na EMTI Odete Colares desde os 11 anos e sempre esteve sob a regra do não uso dos aparelhos na escola.

Já acostuma a usar pouco o aparelho, a estudante conta ter aprendido a prestar mais atenção nas pessoas ao seu redor, e que nas férias, onde pode usar mais o celular, fica por vezes sem saber o que fazer com ele.

"Tripliquei o meu uso durante as férias, mas por eu já não mexia tanto, às vezes entrava no celular e não sabia o que fazer. Eu entrava, desbloqueava e desligava. Era só mais o vício de estar entrando nele, mas só isso", remonta Isadora.

A psicóloga Ana Letícia Soares explica que o não uso do celular na escola é essencial para o desenvolvimento de habilidades básicas do ensino. Um costume muito comum dos alunos citado por ela, por exemplo, era o de apenas bater foto dos conteúdos na lousa, ao invés de copiá-los.

Outro problema era a preocupação com fotos postadas em redes sociais, mensagens que teriam ou não sido recebidas, conversas em grupos e outros recursos online, que impedia a compreensão plena da matéria que estava sendo ensinada.

"Os alunos anteriormente usavam celulares até para bater fotos do quadro. Isso estava prejudicando a escrita deles em sala de aula. Sem falar no nível de atenção que era reduzido porque eles estavam preocupados com publicações, com recebimento de mensagens e celulares", explica a também psicopedagoga.

Em casa os pais também perceberam as mudanças nos filhos. Os relatos são de jovens mais concentrados nas tarefas e principalmente mais comprometidos com a rotina.

O professor Diego Amorim, por exemplo, conta que o filho Diego, 17, teve melhoras significativas no sono desde a implementação da Lei, o que tem resultado em mais disposição e melhorias na saúde.

"Melhorou a qualidade de sono. Diego dormia 1h30, 2 horas da manhã e hoje às 22 horas ele já está sonolento e já consegue dormir. Era uma prática incomum. Ele ficava muito na madrugada no celular e isso me incomodava bastante. Aí com a proibição acho que vai entrando em desuso, vai ficando desinteressante, ele vai ficando rapaz e vai esquecendo", conta o professor da EEEP Joaquim Moreira.

Os resultados relatados pelos personagens são atestados por estudos científicos divulgados pelo Ministério da Educação (MEC). De acordo com o material, utilizado como base para a Lei 15.100, o uso excessivo de celulares pode aumentar distúrbios do sono, em especial nas crianças de 8 a 12 anos, onde aumentam em 28% o risco de ocorrência.

As pesquisas alertam também para o risco de depressão entre os jovens, que pode aumentar até 13% após dois anos o uso exagerado do celular. Os prejuízos também chegam nas salas de aula, já que de acordo com o Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes no Brasil 2022, 80% dos estudantes admitem que o celular prejudica sua concentração.

Por que restringir o uso de celulares nas escolas?​

Ienatla David, Diretora. EMTI Maria Odete da Silva Colares, ressalta importância do contato entre escola e responsáveis pelos alunos
Ienatla David, Diretora. EMTI Maria Odete da Silva Colares, ressalta importância do contato entre escola e responsáveis pelos alunos

ESSA PODE SAIR Restrição fortaleceu o contato entre escolas e famílias

A comunidade escolar tem se fortalecido com o não uso dos celulares pelos jovens.

Se antes os pais ligavam ou mandavam mensagens para os filhos para avisar de algum imprevisto ou assunto familiar, esse contato agora é intermediado pela escola, o que tem aproximado os polos dessa relação.

Agora existem duas situações: a primeira dos alunos que nem levam mais o celular para a escola, e então os pais fazem contato direto pelos canais do colégio, e a segunda, onde a instituição fica com os telefones dos jovens e retornam as ligações assim que percebem o contato dos pais.

Além de blindar as crianças da distração do celular, a mudança tem feito com que os pais conversem mais com as escolas, e consequentemente, participem mais da vida escolar dos filhos.

"A gente até prefere que seja mais presencial. Muitos pais vêm à escola. A gente cobra muito isso dos pais. Não aceito que a gente ligue para os pais e o pai não atenda ou só dê fora de área, desligado… porque e se for uma coisa urgente? Temos dois, três números de contato de pais, tios, avós… O menino passa o dia aqui. É importante essa comunicação escola e família" pontua a diretora da EMTI Odete Colares, Ienatla Sombra.

Para os pais, os canais de comunicação funcionam como uma forma eficaz de contato com os filhos, que permitem desde a deixa de recados a serem repassados no intervalo até a conversa imediata com o filho em momentos de emergência.

"Quando você não pode ter esse contato direto, porque você não vai ser respondido, você tem que recorrer a outros meios. A coordenação faz essa ponte. Se você precisa que eles levem um recado ou atualizem se está tudo bem com o filho. Isso é excelente. Sempre dão muita atenção", relata Camila Rodrigues, empresária e mãe de Laís Melissa, estudante do 3° ano no colégio Master de Fortaleza.

A obrigatoriedade do contato entre escolas e famílias devido à restrição do uso de celular pelos jovens quebrou uma barreira que havia sido construída silenciosamente devido às rotinas aceleradas do mundo contemporâneo.

Para Ana Letícia, os muitos afazeres das escolas e das famílias faziam com que ambos se resguardassem no contato direto com os alunos. Na correria, os pais ligavam direto para os filhos para saber das coisas da escola, e o colégio por vezes tinha dificuldade em encaixar momentos com os pais no calendário escolar.

"As escolas sempre estiveram abertas e as famílias também. Só que por conta de demandas da nossa realidade atual, os pais com muitas demandas de trabalho, família, casa e outras demandas diversas, e a escola também que tem um trabalho muito dinâmico, esse acesso direto com os filhos quando era permitido o uso do celular, os distanciou", pondera a psicopedagoga.

Ainda de acordo com a psicóloga, essa distância tem sido diariamente quebrada pelo contato mais próximo entre as partes, facilitando o compartilhamento da vida escolar da criança ou adolescente.

"As escolas proporcionam momentos de interação. Os eventos que acontecem. No fundamental o dia das mães, festas comemorativas, várias atividades que fazem essa ponte", complementa.

A discussão sobre o uso dos celulares nas escolas ganhou força legislativa em 2024, a partir do Projeto de Lei (PL) 4.932/24, do deputado federal Alceu Moreira (MDB/RS), que antecedeu a norma. No Ceará, o reforço do debate tem data anterior à norma, a partir da publicação do Programa Ceará Educa Mais, que tem como um dos seus eixos de atuação o uso apenas pedagógico dos aparelhos.

Com a publicação da Lei 15.100, este ano, a proibição dos celulares passou a integrar as diretrizes da Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) para o ano letivo, com o objetivo de padronizar as normas em todas as escolas da rede estadual.

"A Seduc tem incentivado iniciativas de convivência escolar, como os Intervalos Culturais, que oferecem espaço para apresentações artísticas durante os intervalos, estimulando a criatividade e a interação social sem o uso de celulares", complementou a pasta, em nota.

 

Celulares nas escolas: governos esperam uso pedagógico dos aparelhos nas salas de aula, junto aos livros
Celulares nas escolas: governos esperam uso pedagógico dos aparelhos nas salas de aula, junto aos livros

Governos tentam se equilibrar entre uso restrito de eletrônicos e tecnologia no ensino

Ao mesmo passo em que se restringe o uso de celulares e outros eletrônicos em sala de aula, o investimento em tecnologia no ensino é uma realidade no País. Prova disso é a adesão de todos os 26 estados mais o Distrito Federal à Estratégia Nacional de Escolas Conectadas, lançada em 2023.

A iniciativa prevê levar internet a 138 mil escolas até 2026, com o objetivo de universalizar a conectividade nas redes de ensino no País. O investimento total é na casa dos R$ 8,8 bilhões, que deverão prover melhor infraestrutura para acesso em alta velocidade, instalação de wi-fi nas escolas e fornecimento de energia elétrica.

No Ceará, por sua vez, pode-se destacar a entrega de tablets na rede estadual de ensino. De 2024 para cá, mais de 228 mil alunos receberam os eletrônicos, com investimento de R$ 100 milhões apenas para a compra de equipamentos para jovens que ingressaram este ano no ensino médio.

A medida busca usar os aparelhos como uma poderosa ferramenta de ensino, como previsto no parágrafo 1° do artigo 2° da Lei 15.100. O debate sobre esse equilíbrio entre a restrição total e os benefícios da tecnologia para o ensino também faz parte do Programa Ceará Educa Mais, que tem como um dos seus eixos de atuação o uso apenas pedagógico dos aparelhos.

Este ano, foi orientado que as escolas incluam a restrição dos eletrônicos ao uso pedagógico em seus regimentos, como forma de alinhar o cumprimento da norma em todas as instituições de ensino.

"Em 2025, essa orientação passou a integrar as Diretrizes para o ano letivo, elaboradas pela Seduc, com o objetivo de alinhar o trabalho pedagógico da rede pública estadual de ensino. Nesse sentido, cada escola, junto com sua comunidade escolar, estabelece as regras quanto ao uso do celular, atualizadas no regimento escolar", disse a pasta, em nota.

A recomendação para o uso pedagógico já existe também em Fortaleza, e está em vigor desde 2008, após a publicação da Lei Estadual 14.146/08, que dispõe sobre o uso de equipamentos de
comunicação, eletrônicos e outros aparelhos similares durante o horário das aulas.

"A SME tem a compreensão de que a formação integral do educando passa pelo desenvolvimento de habilidades e competências para inserção do indivíduo em uma sociedade cada vez mais mediada pelas ferramentas digitais. Neste sentido, já orientávamos a utilização da tecnologia junto de um planejamento pedagógico alinhado ao currículo escolar", pontuou a Secretaria Municipal da Educação (SME) da Capital, também em nota.



Mec considera balanço dos oito primeiros meses como positivo

Procurado pelo O POVO, o MEC considera que esses primeiros oito meses do vigor da lei foram positivos, ainda que diga ser "cedo para avaliações de aprendizagem". A pasta federal cita que há relatos "consistentes" de melhorias no clima escolar, na convivência e na atenção dos alunos. 

"Esse resultado inicial confirma que a medida responde a uma demanda real das escolas e das famílias, além de permitir ser um ponto de partida para o debate e conscientização sobre o uso das tecnologias no ambiente escolar. (A lei) restringe o uso recreativo dos celulares, mas permite o uso pedagógico quando mediado pelo professor. Isso garante que os dispositivos não sejam eliminados, mas utilizados de forma crítica, consciente e a serviço da aprendizagem", destaca o ministério, em nota.

O MEC ainda frisou que o próximo passo "é mapear como a lei está sendo implementada em diferentes redes de ensino, identificando demandas, desafios e boas práticas". Esse levantamento deve ser iniciado ainda no segundo semestre deste ano e vai permitir "compreender de forma mais precisa as condições locais e apoiar gestores e professores no processo de adaptação".

A pasta afirma também que "a partir de 2026, o enfoque será na articulação e mobilização de um monitoramento nacional para avaliação de competências digitais e de aprendizagens", que orientem políticas futuras.

"No ano que vem, o objetivo principal sobre o tema será a articulação com as redes de ensino e a mobilização para o monitoramento. É fundamental ter instrumentos, formas de avaliar as políticas e estamos trabalhando no acompanhamento em todo o País para orientar nossas ações futuras", diz. (Gabriela Almeida)

 

O que você achou desse conteúdo?