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Povo Anacé em Caucaia convive sem acesso à energia e à água ao lado de data center
Reportagem

Povo Anacé em Caucaia convive sem acesso à energia e à água ao lado de data center

No território do povo anacé, de Caucaia, mais um investimento promissor: o data center bilionário da Casa dos Ventos, para a rede social TikTok. Enquanto dados de bilhões de usuários circularão pelo quente "armazém", a comunidade segue — sem previsão de mudança — como um povoado escanteado sem acesso à energia e à água
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PAULO Anacé no Rio Cauípe, em Caucaia. No território deles, a próxima obra: um dos maiores datacenters do Brasil, do Tiktok (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES PAULO Anacé no Rio Cauípe, em Caucaia. No território deles, a próxima obra: um dos maiores datacenters do Brasil, do Tiktok
A preocupação do povo anacé do Cauípe, umas das vertentes da etnia indígena de Caucaia, não é se empreendimentos novos vão causar falta de energia; ela já falta constantemente. Quando a reportagem chegou na Escola Estadual Indígena Anacé Joaquim da Rocha Franco, crianças de mochilinhas ocupavam um espaço metade iluminado e metade no escuro.

Em algumas casas, a água chega uma vez por semana. A da professora Zenaide Lima Felix, de 39 anos, é uma dessas. Para lavar as roupas, ela e vizinhos costumam deslocar-se ao Cauípe, manancial de 21 milhões de metros cúbicos, cujo nome denomina a comunidade. No rio, pegam barquinhos em direção às partes mais limpas dele.

Narram as histórias que antigos parentes do povo anacé enfrentaram colonizadores holandeses no Cauípe. Pegaram em armas para proteger o território no século XVII. Muitos morreram, ou, conforme a cultura, viraram encantados.

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FORTALEZA, CEARÁ,  BRASIL- 11.08.2025: Vista Aerea da Comunidade Indígena Anacé. O Povo Anacé vive em Caucaia na margem do Rio Cauípe. No território deles, um terreno plano anuncia a próxima obra: um dos maiores datacenters do Brasil, do Tiktok. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL- 11.08.2025: Vista Aerea da Comunidade Indígena Anacé. O Povo Anacé vive em Caucaia na margem do Rio Cauípe. No território deles, um terreno plano anuncia a próxima obra: um dos maiores datacenters do Brasil, do Tiktok. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)

"Não somos contra o progresso, só queremos ser ouvidos"

A frase acima foi dita por todas as lideranças ouvidas, tanto os do Cauípe, quanto Thiago Halley, da reserva Taba dos Anacés. Eles reclamam de uma escuta quase nula dos órgãos do governo para com as demandas locais e novos empreendimentos, mesmo em uma região visada.

A importância do Complexo do Pecém e da ZPE é reconhecida. Somente em 2024, a ZPE comportou 38% das exportações do Estado, com destaque para o setor siderúrgico, que impulsionou o crescimento industrial cearense em 10,65%, superando a média nacional. Se o data center é o tesouro mundial, a ZPE é o tesouro do Governo do Ceará.

O data center ainda está em fase de licenciamento ambiental. Depois da Licença Prévia, a Casa dos Ventos protocolou o pedido de Licença de Instalação (LI). O processo ainda está em análise devido a algumas pendências identificadas pela Semace.

"Entre as exigências para a liberação e autorização da LI estão o cumprimento das exigências estabelecidas na Licença Prévia, bem como a obtenção da permissão junto à Cogerh. Há também a possibilidade de ser requisitado um estudo adicional, mas isso será avaliado no decorrer do processo da LI", informou a pasta.

A questão para a comunidade é a rapidez do progresso em um território de pessoas abandonadas. A própria reserva, onde vive Thiago, só foi encaminhada após a demanda da Refinaria Premium 2, que "colocou como ponto inicial para a instalação que o Governo resolvesse a pendência referente ao território indígena anacé", segundo o professor.

Um grupo de trabalho foi firmado em 2010 para identificação e delimitação do território anacé como retorno às solicitações. Os resultados foram considerados rasos pela comunidade e, mesmo assim, a delimitação nunca saiu. "Foi um banho de água fria", relembra Thiago.

A Refinaria teve a instalação cancelada e a reserva só foi inaugurada em 2018, após o seguimento da luta dos Taba dos Anacé. As outras três lideranças seguem com processo de demarcação em estudo, o que diminui a proteção contra novos empreendimentos, como o data center. No RAS da Casa dos Ventos, por exemplo, eles consideram o território mais próximo como o da reserva.

Segundo apurado pelo O POVO, reuniões estão em andamento com lideranças do povo anacé e a coordenação geral da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para recompor o grupo de trabalho, visando a um relatório conclusivo da demarcação.

Há ainda uma movimentação local para a produção de uma cartografia social. Da mesma forma dos anos 1990, os anacés gritam: "Estamos aqui".

A última reunião do governador Elmano de Freitas (PT) com as lideranças da Barra do Cauípe foi em 2023. Desde então, eles relatam dificuldades de contato com as pastas do executivo, ainda que considerem uma "boa vontade" maior nesta gestão do que nas do passado.

 Desapropriação em prol do progresso

A desapropriação em massa de moradores, muitos autodeclarados indígenas, é uma constante desde a construção do Porto do Pecém, em 1995. O projeto marítimo, junto das primeiras expropriações, provocou uma "emergência ética, o fortalecimento da identidade indígena" local, como definido pelo sociólogo e professor indígena anacé Thiago Helley, da Reserva Indígena Taba dos Anacé.

Ao longo dos anos, as lutas envolveram diversos temas, como a demarcação e a instalação de uma reserva, além de demandas de saneamento e saúde, conforme visto mais acima. Uma das lutas envolve a "guerra pela água" do Cauípe, justamente para evitar a instalação das bombas citadas no início da reportagem. Em 2018, cunhãs, curumins e demais moradores da comunidade instalaram-se por meses na beira do rio. O acampamento foi desmontado por policiais militares.

Paulo Anacé, ao relatar o caso, diz "ter sido tratado como bandido". O mesmo é narrado por Marcelo Anacé, diretor da Escola Estadual Indígena Anacé Joaquim da Rocha Franco. Eles relembram o uso de bala de borracha e gás lacrimogêneo. No mesmo local do acampamento, hoje estão os canos da Cogerh.

Membros da comunidade lamentam que a água levada por eles "esfria placas" no Pecém. Segundo a Cogerh, as bombas podem ser utilizadas no Pecém de forma complementar, mas não o são devido aos "bons aportes do sistema da Região Metropolitana de Fortaleza".

"Portanto, o uso do Lagamar do Cauípe tem sido utilizado para abastecimento humano da região no seu entorno", informou a Companhia, apesar dos relatos de carência de água dos anacés. 

Já a ZPE e o Cipp salientaram: "nenhuma água é captada do rio Cauípe, seja pela administração da Cipp, da ZPE ou pelas empresas atualmente instaladas na sua área".

A falta de comunicação, exposta neste caso, seria comum e tornou-se a maior demanda dos povos indígenas locais: a escuta. Solicitam, antes de tudo, apenas informações do que está sendo feito no entorno.

FORTALEZA, CEARÁ,  BRASIL- 11.08.2025: Vista Aerea de onde vão contruir o data center do TIK TOK. O Povo Anacé vive em Caucaia na margem do Rio Cauípe. No território deles, um terreno plano anuncia a próxima obra: um dos maiores datacenters do Brasil, do Tiktok. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL- 11.08.2025: Vista Aerea de onde vão contruir o data center do TIK TOK. O Povo Anacé vive em Caucaia na margem do Rio Cauípe. No território deles, um terreno plano anuncia a próxima obra: um dos maiores datacenters do Brasil, do Tiktok. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)

Água de reúso e consumo de energia do projeto

Para evitar falhas catastróficas, o data center requer garantias de segurança, conforme determina a Certificação Tier III, específica de proteção de dados em centros físicos. Revisões e testes constantes são necessários, além de um grande arsenal de recursos naturais. As previsões de consumo de energia elétrica são de 210 megawatts (MW) na primeira fase, mesma capacidade de energia cerca de 84.000 casas. Na segunda fase, o montante pode dobrar.

O consumo diário vai ser de 5.040 (watt-hora) MWh para uma operação de 24 horas, ou seja, a energia consumida ao longo do tempo. E 1 MWh equivale de 100-200 casas. Ou seja, a energia consumida vai ser equivalente a 500 mil a 1 milhão de casas. Conversão foi feita com auxílio de Adão Linhares, mestre em Engenharia Nuclear e Planejamento Energético pela UFRJ/Coppe e ex-secretário executivo de Energia e Telecomunicações do Ceará.

Também é preciso muita água, pois os enormes computadores internos esquentam com o uso. A água vai esfriar e evitar derretimento. Mais especificamente 30 m³/dia ou 30.000 litros, o equivalente à demanda média diária de 72 residências.

A Casa dos Ventos informou, via nota, que utilizará um sistema de resfriamento em circuito fechado e não evaporativo, também conhecido como Air-Cooled Chilled Water System. Nele, a água absorve o calor dos equipamentos e transfere para um trocador de calor. Não há contato com a área externa.

No segundo retorno, foi informado que o abastecimento para consumo total do projeto será obtido por meio de "poços artesianos instalados no local", mesmo meio utilizado por alguns moradores.

No dia 18 de agosto, o Cipp assinou um acordo com a empresa Utilitas, formada pela Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará (Cagece), Marquise, GS Inima e pela PB Construções. A empresa ficará responsável pela produção e fornecimento de água de reúso para o hub de hidrogênio verde (H2V).

A água sairá de efluentes sanitários da Região Metropolitana de Fortaleza na Estação de Produção de Água de Reúso (EPAR). O data center se utilizará do sistema, que tende a diminuir muito o consumo hídrico.

Duas outorgas para direito de recursos já foram concedidas pela Secretaria dos Recursos Hídricos do Ceará (SRH) para o uso da água. 

Quanto à energia, mesmo que sejam renováveis, precisa de um meio de transmissão. Neste caso, será do Sistema Interligado Nacional (SIN), por meio de dois pontos de conexão: a Subestação Pecém II e a Futura Subestação Pecém III. Para a fase inicial, a conexão será na tensão de 230 kV e, na segunda estação, de 500 kV. Um kv equivale a 1000 volts. 

A Subestação Pecém II não é exclusiva das empresas do Complexo do Pecém. Também atende usinas de geração eólica e está conectada a outras subestações que atendem à população geral.

Questionado, o Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp) afirmou que "uma alta voltagem não representa riscos à oferta de energia da população atendida, tendo em vista que a entrada de novas cargas passa por análise prévia do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que garante a qualidade do serviço".

A Subestação Pecém III, quando implementada, será exclusiva das empresas do Cipp. Na nota, a empresa salientou a oferta de empregos e a possibilidade de atrair novos negócios à região. Também alegaram que o projeto está alinhado com as medidas de sustentabilidade da ZPE.

FORTALEZA, CEARÁ,  BRASIL- 11.08.2025: Vista Aerea da Comunidade Indígena Anacé. O Povo Anacé vive em Caucaia na margem do Rio Cauípe. No território deles, um terreno plano anuncia a próxima obra: um dos maiores datacenters do Brasil, do Tiktok. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL- 11.08.2025: Vista Aerea da Comunidade Indígena Anacé. O Povo Anacé vive em Caucaia na margem do Rio Cauípe. No território deles, um terreno plano anuncia a próxima obra: um dos maiores datacenters do Brasil, do Tiktok. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)

Data center exige eletricidade e água, às quais a comunidade não tem acesso

Duas redes elétricas abastecem a Barra do Cauípe, uma das comunidades dos anacés, no bairro da Pitombeira. Uma é tão inconstante quanto a outra. A instabilidade elétrica da escola revela-se com frequência. Aulas do período da noite já foram canceladas pelo escuro, segundo relatos. A situação estende-se às casas. Ditado comum no bairro é que "basta São Pedro dar um espirro" para a energia oscilar. 

Capturas de tela, de agosto de 2025, de grupos de WhatsApp da comunidade, mostram diálogos sobre quedas de luz. "Aqui só (tem) no roteador e na vó não tem de jeito nenhum", diz uma mensagem. "O carro da Enel chegou a vir?", perguntou outro, respondido com um "Ainda não".

Paulo Anacé, coordenador educacional e liderança do Cauípe, narrou casos de aparelhos queimados e calor intenso. Assinado por ele, os moradores mandaram, em abril de 2025, um ofício para a empresa provedora de energia.

Questionada pelo O POVO, a Enel Ceará afirmou, em 13 de agosto do mesmo ano, que no dia anterior à resposta enviara "equipes para realizar inspeção na rede elétrica" das comunidades.

Todos os transtornos teriam sido provocados somente pela "necessidade de realização de podas de árvores na região, que estavam tocando a rede elétrica e danificando a estrutura". Os técnicos passaram o dia seguinte realizando "mutirão de podas e corrigindo os defeitos encontrados". "A companhia informa ainda que vai continuar as inspeções nos próximos dias na região", completa a nota.

Outro ponto sensível na região é acesso à água e o saneamento básico. Segundo o Relatório Ambiental Simplificado (RAS) feito pela Casa dos Ventos, empresa do data center, não existe rede de esgoto na maior parte da comunidade Pitombeira, sendo utilizadas "fossas rudimentares para destinação do efluente produzido".

Boa parte da população recorre a poços profundos ou a correntes vindas do rio, sem qualquer tratamento prévio. "É despejada, para você poder se lavar, tomar um banho. Não dá para consumir", conta Paulo Anacé.

A cacimba que abastece a escola indígena também está velha. Tem 50 anos de idade. Se vazar, os canos incharão, afetando a tubulação subterrânea da casa, já frágil pela estrutura dos anos 1970. A escola corre risco de desabar: um teto sobre cerca de 220 alunos, que estudam em poucos metros quadrados.

O diretor do colégio, Marcelo Anacé, outra liderança, disse ter solicitado a vinda de técnicos, que prometeram manutenção para o fim de agosto, já no período letivo. "Disseram que era coisa rápida. Mas como eles sabem disso? Nem vieram olhar", questiona ele.

A realidade estende-se a demais comunidades próximas do data center. O RAS da Casa Ventos identificou ausência de saneamento básico, ineficiência de transporte público e inexistência ou funcionamento inadequado de equipamentos urbanos nas moradias do entorno do projeto.

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