É quase impossível você não ter ouvido falar ou mesmo utilizado serviços das chamadas big techs, especialmente as cinco maiores Google, Meta, Amazon, Apple e Microsoft. Elas certamente sabem de você!
O acesso a dados pessoais, hábitos de consumo, preferências políticas, entre outras informações, quase ilimitado que elas possuem, levou muitos países, inclusive agora o Brasil, a discutir a regulamentação da atuação dessas empresas, em diferentes esferas.
Além do projeto de combate à adultização nas redes sociais, o Governo Federal encaminhou um projeto (PL 4675/2025) para tratar mais especificamente das implicações econômicas, notadamente relacionadas às questões envolvendo concorrência, da presença dessas big techs no País.
Até por estar em uma fase preliminar, na qual o Congresso ainda vai apreciar a matéria, o projeto de regulamentação das big techs tem alcance incerto nessa tentativa de tornar o ambiente digital um pouco menos dependente de cinco ou talvez dez empresas quase onipresentes, quanto mais em um contexto nacional no qual existem mais aparelhos celulares do tipo smartphone do que habitantes.
Mas o projeto delimita pontos importantes para criação de mecanismos que impeçam o abuso do poder econômico das grandes plataformas digitais, que vão desde a delimitação de quais são essas empresas, do faturamento que elas têm, o número de usuários e as possíveis punições para casos de desrespeito ao consumidor, aos concorrentes e à economia brasileira, de um modo mais amplo.
Por exemplo, serão enquadradas objetivamente no critério de big techs, as empresas de tecnologia que tiverem faturamento de R$ 5 bilhões anuais no Brasil ou R$ 50 bilhões no mundo. Estima-se que algo entre cinco e dez companhias se encaixam nessa definição.
Elas estarão proibidas de favorecerem seus próprios produtos ou serviços, a chamada autopreferência, e ficarão obrigadas a notificar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em caso de adquirirem uma startup.
Quando do envio do projeto à Câmara, o secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Pinto, disse que entre as razões para a adoção dessas medidas estão o fato de que tais plataformas alteraram a natureza econômica e as estratégias competitivas dos mercados.
“O arcabouço antitruste tradicional não tem as ferramentas necessárias para lidar com as complexas dinâmicas das big techs”. Segundo ele, “o que se vê, atualmente, são ecossistemas digitais cujo controle pode ficar cada vez mais centralizado com impactos sistêmicos na economia”, disse.
Para o CEO da Integrisafe, Paulo Nascimento, a lei é “animadora”. Ele cita, por exemplo, a criação da Superintendência de Mercados Digitais (SMD), na estrutura do Cade.
“Normalmente é assim, são feitas ações pelo Cade reativas e nunca preventivas. Já nesse Projeto de Lei 4675/2025, começamos a ver um movimento do governo em direção ao Congresso. Ele já traz algo diferente, uma espécie de ação prévia do CADE, criando uma Superintendência de Mercado Digital, que não existia. Claramente, não vai agir apenas de forma reativa, mas também preventiva”, exalta.
Já o pesquisador do Instituto Federal do Ceará e coordenador do Iracema Digital, Mauro Oliveira, destaca que a questão da regulação é algo extremamente necessário.
“Ela precisa ser compreendida e eu lamento que as universidades estejam ausentes dessa discussão, porque a universidade deveria ser um local seguro para que a gente pudesse ter um debate que transferisse o interesse para além das diferenças políticas”, pondera.
Oliveira, que lançou, no dia 20 de setembro, o livro ‘Soberania Digital’ afirma ver com “grande preocupação a maneira como as Big Techs operam no que o pessoal está chamando de ‘Sul Global’. Temos hoje uma situação que tenho chamado, no meu livro, de colonização. É uma nova colonização”.
“Por exemplo, o Pix é o nosso herói da tecnologia. Pois bem, o Pix, que a gente se orgulha de dizer que o Trump estava chateado porque deixamos de pagar à Visa e à Mastercard, está com os dados em nuvens. E essas nuvens não são brasileiras, não pertencem ao povo brasileiro. Então, sempre digo que é uma fragilidade muito grande pela qual estamos passando”, observa.
Nesse sentido, ele afirma ver na regulamentação um passo em direção a uma maior soberania digital, embora destacando a importância de que isso esteja associado a um maior letramento das pessoas sobre as consequências da dependência dessas big techs.
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Blocos e países também regulamentam big techs
Mas não é só o Brasil que tem se preocupado com a presença cada vez mais forte das big techs. Uma das principais referências quanto se trata de regulação dessas empesas, é a União Europeia, com duas importantes leis que versam sobre o tema: a Lei dos Mercados Digitais (DMA) e a Lei dos Serviços Digitais (DSA)
A DMA obriga plataformas dominantes a proporcionar mais liberdade de escolha aos usuários e mais espaço para concorrentes. Por sua vez, a DSA exige que elas removam rapidamente conteúdos ilegais ou que causem desinformação, além de proibir publicidade voltada para crianças ou com dados relacionados à religião, gênero, raça ou posicionamento político.
As duas preveem multas pesadas, que variam de 6% a 10% do faturamento global por violações de suas regras. E em caso de reincidência, as multas podem chegar a 20%. Neste ano, a Apple foi multada em 500 milhões de euros e a Meta em 200 milhões de euros por violarem a DMA. Outros países como Japão, Austrália e China também têm mecanismos de controle das big techs que vão desde a proibição de acesso a menores até a proteção rigorosa dos dados dos usuários.
Para o advogado Iago Capistrano, membro da Comissão de Direito Digital, Inovação e Startups da OAB secção Ceará, o projeto de lei brasileiro busca estar em consonância com as melhores práticas, sobretudo da União Europeia e do Reino Unido.
"Posso citar algumas normas internacionais principais: o Digital Markets Act (DMA), da União Europeia; o Digital Markets, Competition and Consumer Act (DMCC), do Reino Unido; e também uma alteração na legislação alemã, chamada GWB-10 (Digitalization Act)", exemplifica.
"Essa legislação alemã trata especificamente de condutas anticompetitivas no contexto digital, como o autopreferenciamento", complementa Capistrano, fazendo referência à natureza semelhante do projeto brasileiro.
Por outro lado, nos Estados Unidos, berço da maioria das big techs, notadamente as cinco maiores, praticamente não existe regulamentação, principalmente no que diz respeito à moderação de conteúdo. Isso ocorre devido à interpretação rígida da chamada Primeira Emenda da Constituição, que garante uma irrestrita liberdade de expressão. Com base nessa interpretação, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chegou a se queixar do Brasil por decisões judiciais desfavoráveis a big techs norte-americanas que, segundo ele, contrariaram esse preceito.
Usuário final é beneficiado com nova lei
Um dos entusiastas do projeto que regulamenta as big techs é o deputado estadual Acrísio Sena (PT-CE) que era até pouco tempo atrás diretor-presidente do Centro de Ensino Tecnológico do Ceará (Centec). Para ele, o projeto vai beneficiar diretamente o usuário final.
"Depois desse projeto, nós temos a oportunidade de combater as taxas abusivas cobradas por aplicativos, nós temos a capacidade de discutir direcionamentos e formas de pagamento, não só o imposto por eles, a questão da transparência desses mecanismos de negócios e o fim de contratos de exclusividade entre aplicativos e empresas que impõem empresas menores de seguir", pontua o parlamentar
"Então, nesse sentido, eu diria que a proposta do Governo Federal vem ao encontro para proibir, aliás, para coibir abusos de poder econômico e, inclusive, de sufocar o desenvolvimento de empresas menores", complementa. Falando especificamente do impacto sobre as pequenas empresas de inovação, as ditas startups, Acrísio Sena lembra que "pelo faturamento que está sendo colocado como alcance, né, desse de R$ 5 bilhões brutos faturado anualmente, dificilmente as pequenas startup estariam nessa condição".
"Mas mesmo assim, acho que nós estaríamos trazendo um ambiente entre as empresas brasileiras, americanas e chinesas para ter um equilíbrio, certo, do ponto de vista da prestação desses serviços aqui… E a regulação econômica tem esse sentido, de criar um conjunto de obrigações, de coibir qualquer tipo de concorrência desleal e acima de tudo", argumenta.
"O Brasil também, com essa Superintendência de Mercados Digitais, começaria a ter essa regulação e ter o maior controle, inclusive do ponto de vista da arrecadação de impostos para o próprio Brasil", conclui.
Projeto 'atualiza' lei de defesa da concorrência
Além da questão mais propriamente relacionada às big techs, o advogado Iago Capistrano, membro da Comissão de Direito Digital, Inovação e Startups da OAB-CE faz uma verdadeira atualização da lei de defesa da concorrência.
"Devemos considerar que o contexto atual é o de que grandes empresas de tecnologia operam quase como um oligopólio. O próprio modelo de funcionamento dessas big techs é chamado de "modelo de negócios de indicação a preço zero". O que é isso? Basicamente, você não paga para criar uma conta no TikTok ou no Instagram. Não paga diretamente com dinheiro, mas paga com algo muito mais valioso: os seus dados pessoais", ressalta.
"Essas empresas lucram tanto porque baseiam seus negócios nos nossos dados, informações, preferências e gostos. Não é à toa que, quando você está no Instagram e pensa em trocar de carro, aparece 'magicamente' um anúncio de carro. Ou quando gosta de um determinado tipo de roupa, surge a indicação de peças semelhantes. Isso não é mágica, é o funcionamento dessas plataformas", exemplifica Capistrano.
"Do ponto de vista concorrencial, isso gera um problema: empresas de menor porte ou porte médio, especialmente no Brasil, têm dificuldade em competir com mecanismos tão poderosos de persuasão e alcance. Acaba sendo uma concorrência desleal", observa o especialista.
Ele pontua que a legislação brasileira e o novo arcabouço, caso aprovado, também permitirá que empresas menores denunciem práticas desleais das big techs. "Quanto ao papel das empresas menores, elas podem acompanhar os processos junto ao Cade, já que o PL prevê participação social em audiências públicas e consultas", cita.
"Também podem oferecer informações à SMD, que pode requisitar dados do mercado. Denúncias espontâneas ajudam a embasar investigações", reforça.
Texto de regulamentação também traz riscos
Embora seja um defensor do projeto, o CEO da Integrisafe, Paulo Nascimento, vê riscos e pontos de atenção relacionados ao PL das bigtechs.
"O que vi, de maneira geral, foram alguns pontos a serem pensados e discutido, tais como insegurança jurídica, excesso de intervenção preventiva, o que não vemos na lei atual em outras áreas em que o Cade atua, aumento de custo regulatório, porque essas empresas precisarão de auditorias e relatórios periódicos e questões de interoperabilidade e portabilidade - que influenciam diretamente na segurança e na nossa Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Para ele, entre os pontos mais preocupantes está uma sobreposição com outras legislações já existentes, como a própria LGPD. "Por exemplo, ao exigir interoperabilidade, a lei determina que aplicativos ou sistemas se comuniquem entre si, mas isso pode gerar problemas de segurança: abertura de APIs, protocolos e padrões diferentes que podem criar vulnerabilidades".
"Esses pontos que citei precisam ser analisados. Sobre o aumento de custos, vale lembrar: sempre que uma empresa é onerada, quem acaba pagando a conta é o usuário final", apontou.
O QUE PREVÊ O PROJETO?
> Regular a atuação de grandes plataformas digitais para prevenir abusos de poder econômico
> Garantir concorrência justa, liberdade de escolha e manutenção de espaço para inovação.
> Atualizar o arcabouço regulatório (Lei de Defesa da Concorrência) para lidar com as novas dinâmicas do ambiente digital
Critérios de enquadramento
> Plataformas de relevância sistêmica: aquelas que podem gerar efeitos econômicos amplos.
> Critérios para determinar se uma plataforma se enquadra como "sistemicamente relevante":
1. Faturamento mínimo: mais
de R$ 5 bilhões anuais
no Brasil ou mais de
US$ 50 bilhões a nível global.
2. Número de usuários.
3. Acesso a grande volume de dados e efeitos de rede.
Estimativa de alcance: entre 5 e 10 plataformas operando no Brasil
Escopo
O foco do projeto é concorrencial e não trata diretamente de moderação de conteúdo.
Também não cobre "conteúdos distribuídos pelas plataformas"
Estruturação institucional
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) será o órgão central de regulação.
Criação da Superintendência de Mercados Digitais (SMD) dentro do Cade para:
1. Monitorar mercados digitais
2. Instruir os processos de designação de agentes de relevância sistêmica
3. Determinar obrigações especiais
4. Fiscalizar o cumprimento
das normas.
Processos administrativos previstos para
1. Designação de plataformas de relevância sistêmica.
2. Determinação de obrigações especiais para essas plataformas.
Ambos os processos deverão ser submetidos ao Tribunal do Cade
Obrigações especiais e condutas proibidas
> Transparência nos critérios que definem a ordem de resultados de busca
> Proibição da autopreferência, ou seja, de favorecer seus próprios produtos ou serviços.
> Portabilidade para que usuários ou concorrentes possam mover dados entre plataformas.
> Obrigação de notificar ao Cade operações que possam reduzir concorrência, incluindo aquisição de startups.
> Relatórios públicos de conformidade sobre o cumprimento das obrigações especiais.
Procedimentos de participação e transparência
> Antes de designar plataformas ou fixar obrigações especiais, será realizada audiência pública
> As decisões serão colegiadas com espaço para defesa das plataformas envolvidas.
> Previsão de multas
ou sanções em casos
de descumprimento
das obrigações.
COMO FUNCIONA EM OUTROS PAÍSES
UNIÃO EUROPEIA
Legislações principais:
Digital Markets Act (DMA), Digital Services Act (DSA)
Aspectos principais:
Plataformas digitais de grande porte com critérios de faturamento elevado, número de usuários, serviços "core" etc., designadas como gatekeepers.
Proibições como autopreferência (rankear seus produtos sobre os de terceiros), impor uso de seus sistemas de pagamento, pré-instalar apps, limitar instalação de apps externos.
Multas pesadas: até 10% do faturamento mundial se descumprirem até 20% em caso de reincidência.
O DSA traz obrigações relativas à transparência de anúncios, repositórios públicos de anúncios, restrições no uso de dados sensíveis para propaganda comportamental, etc.
JAPÃO
Legislação principal:
Lei para promover competição em mercados de apps
Aspectos principais:
Critério de usuários: empresas de tecnologia que operam plataformas com pelo menos 40 milhões de usuários mensais no Japão.
Setores-alvo: lojas de aplicativos, sistemas operacionais, navegadores e mecanismos de busca.
Proibições de práticas anticompetitivas: impedir que app stores ou sistemas operacionais excluam concorrentes, dar tratamento preferencial aos seus serviços, etc.
Sanções: multa de cerca de 20% das vendas domésticas para violações e de 30% em casos de reincidência.
AUSTRÁLIA
Legislações principais:
Lei Online Safety Act e emendas recentes impõem restrições em relação ao uso de redes sociais por menores de idade.
Reforma da regulação específica para plataformas digitais está sendo discutida.
Aspectos principais:
As recomendações da Autoridade Australiana de Concorrência (ACCC) incluem um código de conduta obrigatório para plataformas digitais, para coibir condutas como a autopreferência.
Responsabilidade em segurança online: imposição de idade mínima para uso de redes sociais (16 anos), e de penalidades para plataformas que permitem contas de menores sem controle
CHINA
Legislações principais:
Lei de Proteção de Informações Pessoais (PIPL), outras normas de segurança e privacidade, leis antimonopólio e regulação de algoritmos.
Aspectos principais:
Forte regulação do uso de dados pessoais, incluindo consentimento, limitação de uso, tratamento de dados sensíveis e transparência.
Proibição ou restrição de discriminação algorítmica em plataformas.
Entenda
A lei de defesa da concorrência no Brasil previne e reprime infrações contra a ordem econômica, com o objetivo de garantir a livre concorrência e proteger os consumidores contra o abuso