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Lila Foster: "História e memória estão no centro da disputa"
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Lila Foster: "História e memória estão no centro da disputa"

| ENTREVISTA | Doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo, Lila Foster discute a salvaguarda da memória audiovisual no Brasil
Lila Foster está em Fortaleza para ministrar curso na Vila das Artes
 (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Lila Foster está em Fortaleza para ministrar curso na Vila das Artes

O zelo e a conservação da memória de um país passam por patrimônios materiais e imateriais que, em diálogo pleno, ajudam a compreender as mudanças, progressos e retornos de sua história. No Brasil, o avassalador incêndio do Museu Nacional (RJ), em setembro passado, é só um dos mais recentes exemplos do descaso público com essa memória. A Cinemateca Brasileira sofreu quatro incêndios em sua história, sendo o último em fevereiro de 2016, e é ela a instituição responsável "pela preservação e difusão da produção audiovisual brasileira", conforme afirma-se em texto institucional.

Em entrevista ao O POVO, a doutora, curadora e membro da diretoria da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) Lila Foster - que está em Fortaleza convidada pela Vila das Artes para ministrar o curso "Preservação Audiovisual: História, Princípios e Práticas Participativas" na Escola de Audiovisual - aponta a importância da mobilização da sociedade civil, sugere saídas e afirma se "revestir de um pessimismo otimista" quanto à atuação em preservação do novo governo federal.

O POVO - Qual é o modelo central de preservação audiovisual no País e qual a situação dele?

Lila Foster - No Brasil não existe um modelo central de atuação em relação à preservação audiovisual, não existe qualquer política pública para o setor. Existiram momentos em certas gestões que investiram na preservação audiovisual, mas de forma mais centralizada na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, e sem uma racionalidade mais efetiva desses investimentos em termos de uma política mais duradoura. Existem ações governamentais, claro, mas elas não constituem um modelo central de atuação. A ABPA - Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, associação de profissionais da qual faço parte, construiu o Plano Nacional de Preservação (PNPA) com o intuito de estabelecer diretrizes para o campo da preservação, a atuação dos profissionais, uma maior celeridade entre as instituições da esfera federal, estadual e municipal, uma espécie de guia para o estabelecimento de ações mais duradouras e que atendam de fato o campo da preservação. O PNPA foi um trabalho de fôlego no sentido de consolidar de fato uma política para o campo, que é muito, muito precário. É um guia, mas que não foi ainda institucionalizado, podemos dizer. A verdade é que as instituições de salvaguarda se equilibram como podem, o que foi preservado no País depende muito da insistência, paixão e força de preservacionistas audiovisuais que trabalham nos
acervos brasileiros.

OP - Em relação às estratégias de preservação fora das cinematecas, que outras possibilidades e iniciativas existem neste sentido?

Lila - Acho que uma questão muito grave, além da preservação não ser uma prioridade do governo como bem comprova o incêndio que acometeu o Museu Nacional no Rio de Janeiro, é essa percepção de que a preservação é responsabilidade dos arquivos e de arquivistas. No caso do cinema brasileiro, a consciência de preservação entre cineastas e produtores é mínima. Quando eu penso em iniciativas fora das cinematecas e arquivos, a primeira coisa que penso é em como pensar estratégias de preservação que possam ser estabelecidas antes dos filmes chegarem às instituições de salvaguarda. Na verdade, com o digital, essa ideia de que os filmes sobreviverão e que chegarão de alguma forma aos arquivos não existe. O digital torna mais premente a necessidade dos cineastas e produtores cuidarem dos próprios filmes. Pensar a preservação fora das instituições também significa incentivar pesquisadores e interessados por cinema e memória que se organizem em suas realidades locais e que pensem em projetos de mobilização em torno da preservação. Eu organizo há anos o Dia do Filme Doméstico durante eventos e em cinematecas. A proposta é que pessoas que tenham filmes domésticos rodados em bitolas amadoras como o Super 8, 8mm e 16mm, tragam os seus filmes para serem revisados e, se possível, projetados. Esses eventos mostram para aqueles que têm filmes em casa que esses materiais são interessantes, que são parte da história cultural das cidades, que mostram formas de vida, que são fontes de memória. Os filmes não precisam estar em arquivos para serem reativados, pesquisados. Isso não quer dizer que eu esteja diminuindo o papel dos arquivos, mas os arquivos não dão conta de tudo. É preciso que os que estão "de fora" também se comprometam com
a preservação.

OP - O Museu da Imagem e do Som do Ceará é parceiro do curso que você vai ministrar, mas ele mesmo passou os últimos anos em constante crise, sem orçamento, ora fechado, atualmente em reforma. O que impacta para a memória audiovisual de uma localidade específica esse tipo de situação com instituições que deveriam salvaguardá-la?

Lila - O impacto é enorme. Sem os arquivos funcionando, como estabelecer ações e diretrizes para a preservação da história local? Agora a preservação tem uma dimensão interessante porque muitas vezes nos sentimos soterrados por essa perda enorme da nossa memória e da nossa cultura que acomete o nosso País. Quando pensamos nisso, sentimos uma certa paralisia. A preservação é um esforço, um esforço humano, não existe nada natural no ato de preservar, muito pelo contrário. A memória opera com sobreviventes, a perda é constitutiva. Preservar vem de um desejo de conhecimento. Então eu insisto, não podemos relegar a responsabilidade somente aos arquivos. Quanto mais a consciência da preservação se alastrar, mais forte será o envolvimento da sociedade civil na defesa das instituições de salvaguarda.

OP - Quais as expectativas em relação à preservação dos próprios espaços de preservação a partir do recente incêndio do Museu Nacional e da atuação inicial do novo governo?

Lila - Eu não tenho nenhuma expectativa em relação ao novo governo, nenhuma. Se a cultura já foi relegada a uma subsecretaria, o que dizer da preservação, que está no final da lista de prioridades dos governos? Eu me revisto de um pessimismo otimista. Não dá para esperar os governos, é preciso pressão, mobilização da sociedade civil, do campo cinematográfico, dos profissionais da cultura. Honestamente, eu acho que o campo cinematográfico se mobiliza muito pouco em relação às questões de preservação. Também existe uma disputa em curso em termos de como a história do País deve ser contada, um revisionismo histórico perverso. História e memória estão no centro dessa disputa, o cinema brasileiro e os arquivos audiovisuais certamente tem um lugar nessa disputa.

 

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