Meu Cordial Belchior,
Volta e meia, ouço suas canções como uma forma de compreender melhor o que acontece no País e os movimentos das pessoas pelas bandas de cá. Outro dia, descobri que, em 2019, completam 40 anos desde que você lançou o disco Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo, que, ao lado de Bahiuno, é o que mais revisito quando preciso destas tais explicações. Ou quando preciso lembrar que alguém conseguiu definir tão bem o retrato de um Brasil carregado de crítica social, abordando as diversas vertentes da migração (principalmente, de quem sai do Norte e do Nordeste e vai para o Sudeste), além do amor (romântico e sensual), os muitos tipos de saudade, entre outros temas. Estas narrativas estão lá, em seu disco quarentão, lançado em meio à ditadura militar brasileira, mas que suscita discussões atuais sobre a nossa sociedade, sobre nós mesmos. Só não sei ainda se isso é bom ou ruim.
Queria te contar que, por aqui, há muita confusão, Belchior, muitos movimentos esquisitos. Há uma política sendo dominada por homens caretas, eleitos por pessoas que, desconfio, não estão lá preocupadas com avanços sociais. Você iria reprovar. Acho que eu, assim como você, não entro numa boa e tô perdendo mesmo a esportiva, frente a esta gente indecente, que come, "drome" e consente, que cala, logo, está viva. Calar não dá, Bel. Mas, veja, há também aquela gente, honesta, boa e comovida, que, no fim da tarde, tem a sensação de missão cumprida. Há ainda gente, muita gente, produzindo música, cinema, poesia, livro e tantos outros tipos de artes possíveis e impossíveis. São elas que nos ajudam a seguir em frente, por vezes. Tem gente que não cala mesmo. É bonito ver isto acontecer aqui em Fortaleza.
Tenho pra mim que você é, hoje, como aquele amigo que embarcou comigo, cheio de esperança e fé, e que já se mandou. Existe um respeito por sua obra, uma certa gratidão sincera nos olhos de quem canta suas composições nas mesas de bar, nos karaokês, em shows, em discos. Muitas destas pessoas nem desconfiam, mas algumas das canções que estão na boca do mundo foram lançadas lá em 1979, todas no mesmo álbum.
Medo de Avião, por exemplo, é aquele folk que todo mundo dança e canta e sorri quando começa a tocar. É ela que abre e fecha o repertório do disco, sendo a segunda versão, em parceria com Gilberto Gil. Esta não toca muito por aí, mas é tão linda quanto a mais conhecida. Você, compositor de poucos mas bons parceiros, traz duas músicas construídas ao lado de Toquinho, Pequeno Perfil do Cidadão Comum e Meu Cordial Brasileiro. Estas duas, por sinal, são as que trazem críticas sociais mais carregadas e cruas.
A música Espacial remete bastante à minha infância, Belchior, porque papai sempre gostou muito de cantá-la e ela tem algo de delicada, principalmente, quando você diz: "deixa o cansaço/ apressa o passo/ E vem correndo pro terraço e abre os braços/ Para o espaço que houver". É bonito mesmo. Este disco traz ainda alguns dos grandes hits da sua carreira, que vou relembrar aqui, porque há outras pessoas lendo esta carta: Retórica Sentimental, Brasileiramente Linda, Tudo Outra Vez, Conheço Meu Lugar e Comentário a Respeito de John (assinada ao lado de José Luiz Penna).
Meu cordial Belchior, este disco fala muito sobre você e muito sobre nós, mesmo depois de tanto tempo e de tanta vida vivida. Daqui, desconfio que, agora, você está inteiramente livre e triunfante.
Sulamericanamente,
Camila Holanda
Uma fã de primeira grandeza
Repertório do disco
Lado A
1. Medo de Avião (Belchior)
2. Retórica Sentimental (Belchior)
3. Brasileiramente Linda (Belchior)
4. Pequeno Perfil do Cidadão Comum (Belchior/Toquinho)
5. Tudo Outra Vez (Belchior)
6. Conheço Meu Lugar (Belchior)
Lado B
1. Comentário a Respeito de John (Belchior/José Luiz Penna)
2. Voz da América (Belchior)
3. Espacial (Belchior)
4. Meu Cordial Brasileiro (Bel/toquinho)
5. Medo de Avião (Belchior/Gilberto Gil)