Para cada tiro certo da Netflix, surgem 99 balas pela culatra. Visando a expansão, a gigante do entretenimento priorizou quantidade a qualidade o que, concorde ou discorde, rendeu lucros bilionários. Roma, de Alfonso Cuarón - vencedor de três Oscar na cerimônia do último domingo - talvez represente o ponto de virada da rede de streaming. Nessa busca por criações, por obras autorais, Boneca Russa talvez seja o mais fascinante e surpreendente efeito colateral.
Criada por Amy Poehler, Leslie Headland e Natasha Lyonne - que também produz e protagoniza a série, além de dirigir o episódio final da temporada -, o seriado de oito curtos episódios de 27 minutos chegou à Netflix no início do ano já vendendo uma premissa das mais batidas. Tal qual Feitiço do Tempo (1993), Meia-Noite e Um (1993) e até o recente A Morte Te Dá Parabéns (2017), a ideia central é o mesmo dia se repetindo ad infinitum. Nadia (Lyonne) comemora seus 36 anos em festa na casa de uma amiga. Despachada, meio drogada, engraçada, ela passa a noite se divertindo e acaba atropelada por um táxi.
Nadia acorda dentro do mesmo banheiro e todos os eventos passam a se repetir - e junkie que é, ela jura ser efeito psicotrópico de um cigarro israelense que fumou. Até que morre. E volta. E morre. E volta. As mortes absurdas, a investigação esdrúxula e a personalidade de Nadia/Natasha prendem nos primeiros episódios. Um dia, a programadora de games ruiva se encontra num elevador com Alan (Charlie Barnett) e os dois descobrem estarem presos no mesmo looping.
Um dos fatores mais fascinantes de Boneca Russa é a transição para o drama representado pelo certinho/instável Alan. Envoltos na mesma realidade, essas duas almas opostas precisam trabalhar juntas para desvendar a situação metafísica. E é aí que a série começa a tratar de distúrbios psicológicos, traumas e a importância do compartilhamento da dor pela fala para a cura - para citar o conceito desenvolvido pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856 - 1939). Os dois, diga-se, são recheados de defeitos, como toda pessoa na face da Terra, e têm ainda tendência de fugir de si mesmos - ou pelo menos de tentar escapar da necessidade de refletir sobre os próprios atos e traumas.
A chave para a compreensão da discussão sobre a psicologia é a exótica Ruth (Elizabeth Ashley), terapeuta e espécie de mãe adotiva de Nadia. Ela compreende os traumas da filha e sabe os limites que pode tocar. Ela também se recusa a tratar Alan de forma irresponsável, e acaba sendo um centro dramático forte para os dois complexos e humanos protagonistas.
No fim das contas, porém, Boneca Russa é a série de Natasha Lyonne. Ex-atriz mirim de Hollywood, ela cresceu para virar uma adulta problemática, cheia de questões com drogas e dificuldades de lidar com a família. Tal qual a personagem que ela mesma criou. As duas também compartilham a ascendência judaica. Assim, dentro do surrealismo metafísico, existe um roteiro profundamente autoral e autobiográfico. E a originalidade fica até na quebra de estereótipos em alguns detalhes, como a profissão de Nadia. Ela é uma genial programadora de games, algo que é representado quase sempre por personagens masculinos e socialmente ineptos. O oposto completo da protagonista.
Em seus oito episódios, Boneca Russa oferece toda uma gama de emoções e passeia por diferentes gêneros cinematográficos. Trata de material humano com toda a riqueza, boa e ruim, que é própria da humanidade.