"Quão cruéis podem ser os homens?", questiona-se Elizabeth I (Margot Robbie), rainha da Inglaterra, após uma vida de desconfiança e embrutecimento imposto pelo sexo oposto. Duas Rainhas, de Josie Rourke, conta a história dela - ou Isabel I, como é conhecida no Brasil - e de Mary Stuart, regente da Escócia e rival pelo trono inglês. Mas é também a história de quase todas as mulheres em posição de poder. Ou fala sobre como os séculos se passam e a estrutura social mantém as bases sexistas de 1559. O filme estreia no Brasil no dia 4 de abril.
Existe todo um contexto complexo sobre a sucessão do trono da Inglaterra e Irlanda que Duas Rainhas pouco explora. Ali, trata-se dos movimentos finais da dinastia Tudor, substituída pelos Stuart, o que significou a anexação de Escócia ao que viria a ser conhecido como Reino Unido. A personagem de Margot Robbie é filha de Henrique VIII com Ana Bolena, segunda das seis esposas do rei que fundou a Igreja Anglicana para divorciar-se de Catarina de Aragão. A pretensão para o reinado dela, no entanto, era fraca, pois sua mãe havia sido morta pelo pai, que anulou o casamento. Já Maria da Escócia, interpretada por Saoirse Ronan, era neta de Margareth Tudor, irmã de Henrique VIII e, por isso, também tinha pretensão ao trono inglês. Os Stuart, porém, haviam sido excluídos da linha sucessória pelo antigo monarca.
O filme, porém, não perde tanto tempo nos pormenores (ou "pormaiores") das dinastias. A religião, o quem dorme com quem, o parentesco dos personagens é o que transforma a obra em documento histórico. E Duas Rainhas busca simplesmente ser bom cinema de ficção baseada em fatos.
Elizabeth e Mary são opostas. A primeira tem problemas de pele e no cabelo, que aos poucos a deformam para um visual que inspirou a Rainha de Copas, de Alice no País das Maravilhas. A segunda é angelical, bela em seu aspecto inocente. A inglesa nunca casou-se e mostra aversão a maioria dos homens, que via como potenciais usurpadores ao trono; ao mesmo tempo, ela vivia cercada de conselheiros do sexo masculino. A escocesa teve três casamentos - todos meio trágicos -, e preferia a companhia de aias e damas de honra. Mary era pura confiança, decisão, desejo e é quase uma idealização feminista em Duas Rainhas. Elizabeth tem tanta insegurança quanto poder.
Josie Rourke constrói a relação das duas monarcas sempre a distância. Assim, elas sempre estão em realidades quase opostas. Só que, ao mesmo tempo, as duas vivem delicadezas semelhantes. Duas Rainhas é um filme que só poderia ter sido dirigido por uma mulher, já que parece dimensionar a opressão de duas monarcas de séculos passados. Tudo isso, diga-se, mantendo um diálogo com discussões atuais, como sobre a forma que a sociedade impõe a competição entre mulheres ou até sobre sororidade.
Duas Rainhas não chega a ser um filme perfeito. Os exageros na atuação e maquiagem de Margot Robbie dissipam parte da complexidade da personagem, que soa pura e simplesmente louca. A trama carece ainda de certa contextualização para públicos não britânicos - talvez as críticas de cinema ajudem. Ainda assim, é raro um filme de época, remontando história real das mais importantes do Império Britânico, conseguir ser puramente humano e estabelecer um diálogo tão claro com o mundo de hoje. Para o filme, antes de serem rainha da Inglaterra e rainha da Escócia, Isabel e Maria eram mulheres poderosas galgando espaço num mundo masculino.
Dinastias Tudor e Stuart
Maria Stuart, Rainha da Escócia (1936)
Filme de John Ford, com Katharine Hepburn (foto) no papel da monarca escocesa e Florence Eldridge interpreta Isabel I. O drama acompanha uma linha do tempo bem parecida com a de Duas Rainhas.
Shakespeare Apaixonado (1998)
A controversa comédia romântica vencedora do Oscar de melhor filme mostra o contexto artístico do reinado de Isabel I. A personagem é central na obra, sendo magistralmente interpretada por Judi Dench (foto).
Elizabeth (1998) e Elizabeth: A Era de Ouro (2007)
As duas cinebiografias dirigidas por Shekar Kapur focam na vida da Rainha Isabel (Cate Blanchett) (foto). Na sequência, Maria Stuart é interpretada por Samantha Morton. A obra mostra parte omitida em Duas Rainhas.
The Tudors
(2007-2010)
Voltada à geração anterior dos Tudor, a série mostra o reinado de Henrique VIII e seus polêmicos seis casamentos, dois divórcios, duas viuvezes autoinflingidas e uma natural. Mãe de Isabel I, Ana Bolena é interpretada por Natalie Dormer (foto).