Semana passada os móveis foram pro conserto e a sala ficou um tanto vazia. Quando chegava em casa, falava sozinho e as paredes respondiam. Sofá e cadeiras precisavam de cobertura nova, a antiga estava ou manchada ou desgastada ou ambas, com marcas de café e comida que alguém deixou escapar das mãos.
O homem que veio buscá-los disse que ficariam como novos, que aproveitaria a espuma e o encosto. E se sentou no sofá, estirando as pernas e deitando as costas, como a provar que era realmente confortável aquele conjunto desencontrado de sofá e cadeiras, nada rimando com nada.
Mas é assim que trabalham os carpinteiros. Precisam fazer acreditar que o que temos não é totalmente descartável, que aquele braço de sofá é sólido, que a espuma sobre a qual sentamos por anos e anos é das mais resistentes e nem se encontra mais hoje, de modo que será preciso substituí-la por outra, mas preservando parte do material antigo. Uma espuma diferente, apropriada ao tempo em que espumas não têm de durar uma ou duas gerações. Assim falou o mestre.
No dia seguinte vieram dois homens para levar tudo embora. Um mais baixo, amorenado, gordinho, usando camisa e bermuda jeans, óculos e pochete. Disse: o sofá não passa na porta. Eu respondi: mas ele entrou por aqui, tem de passar. Ele insistiu: mas agora não passa mais.
Quis entender a lógica do homem, claro, que não era a minha. Pra mim, era indiscutível que, se o sofá havia entrado por uma brecha, ele obviamente conseguiria sair por ela. Tudo que entra, sai. A mesma porta que dá pra rua também dá pra cozinha ou pra sala.
O mesmo vale pras janelas, que se abrem e se fecham ao tempo só. Ele concordou, talvez apenas por educação, mas logo voltou à carga inicial. Acrescentou ainda que fazia sentido o que eu dizia, mas o fato é que o sofá não passaria pela porta. E não passou mesmo, seja porque a porta havia encolhido, seja porque a peça havia engordado.
Passei a inventariar razões pra redução da porta ou o aumento do sofá. Não encontrei nada que justificasse o fenômeno, que considerei inexplicável. Já desparafusado e esquartejado no centro da sala, desceram com as partes do sofá nos ombros. Fizeram o mesmo com as cadeiras, que foram inteiras mesmo. Até que tudo ficou vazio.
Fui trabalhar.
Quando voltei, estava sozinho. Falei às paredes, e elas responderam. A sala como uma caixa de ressonância, despida, os cômodos nus, os objetos retraídos e o piso estalando enquanto andava. Uma casa é como uma igreja: sua memorabilia é a prova de que o tempo passa. Sem objeto que envelheça, sem o sofá que se afunde e as cadeiras que amareleçam, o que resta é como um fio de voz que ecoa pra ninguém, como uma pregação sem rebanho.