Em tempos de crise migratória na Europa, o alemão Christian Petzold apostou em uma virada de mesa com o drama moral Em Trânsito.O filme é adaptação da obra homônima de Anna Seghers (1900 - 1983), lançada em 1944 - próximo ao fim da Segunda Guerra Mundial e derrocada da Alemanha de Hitler. O diretor subverte a lógica em dois pontos, cruciais para entender a meta de Petzold com o filme. Em vez de drama de época, o cineasta aposta em cenário contemporâneo. E o tal do nazismo deixa de ser mote para ser pano de fundo.
Assim, no primeiro filme desde Fênix (2014), Petzold reinterpreta a obra de Seghers. O contexto não é mais o da Alemanha nazista, algo que hoje soaria datado - espera-se, pelo menos. O mote é a crise migratória europeia. Atualmente, a maioria dos países do Velho Continente temvivenciadouma onda crescente de xenofobia em respostaaos refugiados de países muçulmanos. Esse é, aliás, um dos principais impulsos para a eleição de governos conservadores em diversas nações.
A mudança cria uma nova - aliás, uma antiga - perspectiva migratória para a Europa. No filme, Georg (Franz Rogowski) é um de vários alemães tentando fugir da França ocupada pela Alemanha em direção ao outro lado do oceano Atlântico em busca de refúgio. Assim, Petzold aborda a crise migratória tanto no ponto de vista histórico - fluxo sazonal de população oprimida por governos autoritários -, quanto na questão atual. Vale ressaltar que o nazismo não é abordado de forma patente. Ele é sub-entendido com referências à ocupação da França, perseguição a nazistas e campos de concentração. Disso pode-se ler que a perseguição sistemática de grupos minoritários pode surgir de um vindouro governo conservador europeu.
Em Trânsito, porém, não é um filme puramente político. É um drama moral e um filme sobre narrativas entrecortadas. Georg, o protagonista, foge de Paris para Marselha em busca de refúgio. Lá, ele vê uma oportunidade de salvação ao assumir a identidade do poeta Weidel, que se suicidara ao ser abandonado pelo amor da vida. Na cidade portuária - em toda cidade portuária, segundo Georg - ele encontra um mar de histórias de sobrevivência de imigrantes.
Ali há Richard (Godehard Giese), o médico apaixonado que não fugiu da França porque sua amada desceu do navio. Há Melissa (Maryam Zaree), mulher surda e recém-viúva, moradora ilegal de Marselha e que tem de se adaptar à nova realidade com o filho, Driss (Lilien Batman). Tem também uma arquiteta (Barbara Auer) que, em busca de refúgio, tenta embarcar com dois cães que odeia para devolvê-los aos donos, que também odeia. E há Marie (Paula Beer), a mulher que abandonou o poeta Weidel, a única diretamente afetada pela mentira de Georg.
Em Trânsito é um filme rico de histórias, de contexto político robusto e com uma adaptação inteligente, que atualiza uma obra literária de décadas passadas. É o dilema da predominância entre amor e sobrevivência num mundo que então - que hoje - é dominado pelo medo e pelo ódio.