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Entre a Vila Nazaré e os apartamentos “Maricota”, no bairro Parque Araxá, um portão de cor amarela com a placa de “proibido estacionar” chama atenção bem ao lado de uma pequena oficina de “faz-tudo, conserta-se de um tudo”. O imóvel de número 65 da rua Padre Graça é endereço — vejam só! — do último cinema de bairro que ainda resiste à modernidade da quinta capital do País.
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Batizado de Cine Nazaré, uma homenagem à antiga proprietária (Ernestina Medeiros) devota da santa em questão, o local foi inaugurado na Fortaleza de 1941. Desde 1970, Seu Vavá — corpo franzino que já abarca 87 anos de vida — é o dono do estabelecimento, atualmente parado para reformas. “O salão está pronto, mas o hall de entrada onde eu pretendo fazer uma salinha de musculação (para os meus amigos da Melhor Idade), está toda quebrada”, antecipa.
[SAIBAMAIS]A visita tomou uma parte da tarde de segunda-feira, 22. Apesar da visível, porém compreensível bagunça, o ambiente mantinha uma aura que a Cidade já não comporta em pleno século XXI. Portão aberto, duas paredes oferecem, de certa forma, o “cardápio” de astros e divas presente naquele cinema: de Rita Hayworth a Gary Cooper, de Sophia Loren a Oscarito. Além de dedicatórias: “Seu Vavá, quando vai ser a reinauguração? Me avise...”
Na sala de projeção, de paredes e chão escuros pelo carpete, 75 cadeiras vermelhas dividem espaço com algumas luminárias brancas. O banheiro, um charme com os dizeres na entrada para os respectivos sexos: “senhora” e “cavalheiro”. “Hoje em dia, não existe mais cinema. Esses shoppings de hoje têm umas televisões grandes! Cinema mesmo, assim de verdade, como eu faço, só esse aqui!”, gaba-se.
[FOTO2]A paixão de Seu Vavá pela sétima arte tem como primeiro cenário o antigo Cineteatro São José (praça Cristo Redentor).“Em 1939, chegamos em Fortaleza ali pela (rua) 25 de Março, que terminava lá no São José. Um dia, desci e fui lá no cineteatro. Tinha as portas laterais, aí quando eu vi aquele negócio (na tela), aquelas fotografias, aqueles homens montados nos cavalos... Aquilo, pra mim, foi uma maravilha! Naquele tempo, havia cinema em todos os bairros; no Otávio Bonfim, tinham dois”, conta. O interesse cresceu de tal forma que, aos 16 anos, ele já tomava conta do primeiro cinema. “Aí ele pegou fogo, enfim...”
Subindo as escadinhas do “Maricota” (que também são de sua propriedade), Seu Vavá, enfim, nos leva ao acervo de filmes que não se resume a películas de 16mm e 35mm – segundo ele, são mais de dois mil filmes. Muitas produções em VHS e até DVDs bem recentes inundam a parte de cima de um dos quartinhos que serve de depósito. “Eu nem peço, as pessoas chegam aqui e me dão esses filmes!”. A maioria dos gêneros segue a linha dos romances e os clássicos faroeste, popularmente conhecidos como “bang-bang”.
“Do Chaplin, só tenho em VHS. Mas tenho A Paixão de Cristo em cinema mudo!”, apressa-se em dizer. O maquinário é um caso à parte, datado das décadas de 1920/1930. “Essa aqui (referindo-se ao projetor) é uma Philips holandesa! Comprei ele — pra você ver — por uns 200 cruzeiros, acredita?”, ri-se. Cheio de histórias e sempre solícito, Seu Vavá só esmorece o olhar quando o assunto é dona Maria, 85, esposa falecida há exatos nove meses. Com ela, teve três filhas e quatro netos.
“Imagine você, né, 60 anos com a mesma mulher! Não é pouca coisa, não... Eu ainda tô meio assim, tentando me distrair e coisa e tal, ficando aqui na oficina... Por isso que parei com a reforma”.
APELIDO
Vavá de ‘Vargas’
“Nasci em 1930. Naquele tempo, o Getúlio estava em campanha. Então, nasce o Vavá, eu, primeiro filho do meu pai. Ele, que era político, coloca meu nome de Raimundo Getúlio Vargas. Com pouco, ficou Vavá. Quando eu cheguei na idade de servir ao Exército, fui me alistar. ‘Cadê sua certidão de nascimento?’ Sei nem o que é isso! (risos) Quer dizer: meu pai nunca havia feito meu registro. Aí eu cheguei no cartório, ali na Floriano Peixoto, e me registrei. Morreu o Vavá e nasceu o Raimundo Carneiro de Araújo”.
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LIVRO-REPORTAGEM Formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Júlia Ionele é autora de Cine Nazaré – Um Cinema Vivo (2017). O livro-reportagem, escrito como trabalho de conclusão de curso, resgata a história do local pelo viés afetivo.