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Lucrecia Martel e a Netflix: Reflexões no cinema
Vida & Arte

Lucrecia Martel e a Netflix: Reflexões no cinema

Ponderação levantada por cineasta argentina gera reflexões sobre papel das séries e plataformas de streaming na perpetuação de um modelo antiquado de se fazer cinema
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NILBIO THÉ

ESPECIAL PARA O POVO

vidaearte@opovo.com.br


A diretora argentina Lucrecia Martel, em entrevista recente ao El País sobre seu novo filme, Zama (lançado em 2018, dez anos após seu último longa), criou certa polêmica ao afirmar que, apesar da indiscutível melhora da qualidade televisiva (ao comparar o melodrama dos anos 1970 Dallas com a iconoclasta Breaking Bad), as séries seriam, em sua ótica “um retrocesso”.


O audiovisual tem um apelo midiático que a ópera ou a fotografia não têm, o que torna possível dividir seu público cativo em dois tipos bem estereotipados, mas não menos verdadeiros: os geeks, que fazem maratonas seguidas de suas séries preferidas e dificilmente conhecem Lucrecia Martel (apesar de um filme seu já ter estado na Netflix), e os que chamo “conceituais demais”, que não veem nada da Marvel e adoram a Lucrécia, se apressando em concordar com ela. Vários professores de cinema estão nesse grupo.


O cinema correu e fez em um século o que a música e a literatura fizeram em vários. Mas convenhamos: quem ouve Schönberg, criador do dodecafonismo, em casa? Qual beatlemaníanco ouviu Revolution 9, peça concreta do Álbum Branco, pelo menos três vezes? Claro!, tem gosto para tudo...

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O exagero se dá porque tanto os geeks quanto os “conceituais demais” simbolizam a dicotomia lucro x estética. Avanços estéticos não necessariamente são sucesso de público, mas são tão necessários quanto o lucro. É o Capitalismo Artista no qual os produtos se reinventam sempre. O filme O Filho, dos irmãos Dardenne, arrecadou na estreia nos EUA (segundo o Imdb) míseros 585 dólares, enquanto os geeks computam todos os milhões de suas franquias preferidas como se tivessem dinheiro deles investido ali.


Numa época em que é comum transformar filmes em “franquias”, uma voz como Lucrecia é importante. Mas é absurdo dizer que séries são retrocesso. A diretora argentina pertence ao “cinema contemporâneo”, ou “cinema pós-gênero”, para evitar o termo pra mim inexplicável “cinema de arte”, que é equivalente, digamos, ao teatro pós-dramático, onde a necessidade de ação é mínima. Em Esperando Godot, de Samuel Beckett, por exemplo, o tal Godot nunca chega. A história é um não-acontecimento.


Gilles Deleuze fala desse cinema no livro Imagem-Tempo, sobre filmes que precisam de espaço na nossa mente. Lucrécia diz que o cinema “evoluiu” narrativamente, mas as séries se apoiam no romance do século XIX. Ou seja, as séries são estruturadas no que Joseph Campbell chamou de “jornada do herói”: uma forma de narrar ancestral, que conversa com nossa alma e que, portanto, não nos abandona, da mesma forma que a música tonal (por mais genial que seja Schönberg) e a pintura figurativa. Essas narrativas são atemporais e não “atrasadas”. Mas a comparação com o século XIX vai além.

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Um museu contemporâneo é um cubo branco com poucas obras em suas paredes. Já no século XIX, uma exposição era um amontoado de quadros, do chão ao teto. Como o menu da Netflix, não sabemos por onde começar. Há uma “ditadura do entretenimento”.


Viver no paleolítico foi dureza, mas a pós-modernidade também não é fácil. Mas nós nos beneficiamos com isso. A Teoria da Cauda Longa separa os produtos de massa dos produtos de nicho (apesar de algumas obras fugirem disso). Capitão América: é caro, lucra muito e tem vida comercial curta. O filme de 585 dólares dos Irmãos Dardenne é o oposto. Mas e as séries? Como inová-las?


Moebius, em seu quadrinho Garagem Hermética, escrevia um capítulo sem lembrar o que escrevera no anterior, dando um clima diferente à história. Séries de episódios independentes, como Black Mirror, têm essa liberdade. Se não há ousadia narrativa, temos personagens profundos (Rita, Merlí, Bojack).


E os nichos de público de temas complexos? Séries de visibilidade queer, como a infantil Shezow ou Sense8 existem. Sobre movimento negro? Também. Mas o principal: estamos exigentes, e com tanta oferta, é difícil se destacar. Então penso que, ao invés de elucubrar sobre uma ditadura do entretenimento, seja mais produtivo pensar no início de uma democratização de representações a partir das séries.


Nílbio Thé é arte-educador, coordenador do MBA em Negócios Digitais e da especialização em Desenvolvimento e Programação de Games da Unichristus.


 
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