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Musa Michelle Mattiuzzi fala sobre a performance como ato político
Vida & Arte

Musa Michelle Mattiuzzi fala sobre a performance como ato político

Em passagem por Fortaleza, a performer paulista Musa Michelle Mattiuzzi conversou com o Vida&Arte sobre arte, política e racismo
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Poucas horas antes de deixar Fortaleza – para onde veio como convidada a ministrar um módulo de formação na Vila das Artes e a apresentar a performance Merci beaucoup, blanco! na abertura do III Encontro Internacional de Imagem Contemporânea (EIIC) –, a performer Musa Michelle Mattiuzzi nos recebeu para conversar sobre sua obra e as questões que partem dela - marcadamente políticas, voltadas a discussões de raça e gênero. Musa ganhou visibilidade com sua participação na controversa edição de 2017 do Prêmio PIPA, que desde 2010 divulga a arte contemporânea do Brasil e tem como base a votação popular pela internet. A artista estava em primeiro lugar até pouco antes do fechamento dos votos, quando grupos de direita se organizaram para atacar a performer nas redes sociais e realizar mutirões a favor de outro artista indicado, que acabou vencendo.


Antes do início da entrevista, que aconteceu na manhã da última terça, 27, Musa contou da dor de um abscesso na virilha surgido no domingo anterior. Mesmo com dificuldades para andar e suando constantemente ao longo de toda a conversa – e nem o calor de Fortaleza seria capaz de produzi-lo –, Musa não deixou de se entregar à entrevista. “Meu trabalho artístico está todo permeado por dor, violência e experiências de quase morte”, resumiu, quase ao final do encontro. As lágrimas que se seguiram à afirmação, sejam fruto somente da dor física ou da mistura desta com as dores subjetivas que dividia, testemunharam sobre a força e a verdade não somente das palavras, mas do trabalho e da vivência de Musa.


O POVO - Como forma de apresentação, como você começou na arte e qual a sua trajetória até então?

Musa - Comecei com teatro na década de 1990. Não tinha intuito de me tornar uma profissional, era mais pra ter contato com arte, trabalhar subjetividade. Aos poucos, fui percebendo que não era só isso. Me identifiquei com o fazer artístico e, então, não parei. Fui fazer Universidade, sou formada em Comunicação e Artes do Corpo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com habilitação em Performance. Termino a faculdade e vou morar em Salvador, lá minha carreira deslancha. Foi um caminho lento e tentei degustar ao máximo, porque eu tinha muito prazer em fazer o que eu faço. Aos poucos, fui entendendo como ganhar dinheiro e percebendo que esse é o meu modo de vida.

OP - No caminho da performance, quais são as principais preocupações e temas da sua obra?

Musa - No começo do trabalho autoral em performance, minha questão era quanto tempo eu conseguiria ficar pelada em espaços públicos. Em Salvador, percebi que conseguia ficar nua em espaços públicos por muitas horas, se eu quisesse. A grande maioria da população de lá é negra e essa população vive as circunstâncias de um País racista estruturalmente. Então eu posso ficar na rua nua desse jeito porque têm muitas mulheres negras em situação decrépita na cidade de Salvador. Eu começo, assim, a perceber meu privilégio de classe e também que eu poderia fazer um trabalho artístico articulando o meu corpo negro e a cidade, pensando nas intersecções políticas que ela abarca. Em determinado momento desse processo, convidei pessoas do circuito de arte para me assistir. De repente, estar nua na rua, caminhando e fazendo performance, começa a ser visto pela polícia. Antes, durante muito tempo, não tinha nenhum tipo de intervenção policial. Isso se dá porque as pessoas que estão em torno movimentam esse olhar curioso da polícia. Começo a trabalhar questões em cima do meu corpo negro, de mulher, na rua, sendo vigiado ou não. Eu já faço há sete anos o trabalho Merci beaucoup, blanco! (apresentado na abertura do EIIC). O meu fazer artístico em performance vai criando essa narrativa política. Eu saio do lugar do subjetivo e vou entendendo a ação do ato político.
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OP - Então sua obra é política?

Musa - É, por conta de uma constante estrutural. No nosso país, temos uma população negra totalmente marginalizada e faço parte desse processo de marginalização. Meu trabalho se torna político porque, durante muito tempo, as mulheres negras não entraram no circuito de arte contemporânea. Dá pra contar nos dedos o número. Quando eu entro nesse mercado, percebo que minha presença é um ato político por si só. O processo da arte é totalmente elitizador, elitizante e elitizado, também. É muito difícil uma pessoa periférica conseguir entrar num espaço de arte porque ela tem uma vida estrutural totalmente quebrada. Eu passo por um processo muito quebrado pra poder estar aqui. Consegui furar uma barreira, então meu trabalho se torna político justamente por conta do racismo estrutural do País e por eu perceber que posso fazer, e estou fazendo, um trabalho artístico que se deve à marginalização do corpo da mulher negra. Eu trabalho essas questões que durante muito tempo não foram trabalhadas, refletidas, e essa é a importância da minha autoria nos espaços de arte.

OP - Você também está no meio acadêmico, que também é elitizado. Há uma discussão que, na academia, os autores estudados são quase sempre uropeus...

Musa - Sim. Tem um caminho para ser feito, dentro de um sistema capitalista, que é esse: você vai pra escola, se forma e depois vira um profissional. Fiz esse caminho e tentei, dentro dessa perspectiva, me tornar uma profissional de arte. No momento inicial eu não me questiono, mas vejo agora que faz quase 10 anos que me formei na faculdade e vivo a mesma situação que vivia há 10 anos no sentido financeiro, social. Muitos dos artistas fazem tudo na raça, mas há condições e condições. Meu processo de fazer na raça foi muito por não ter. Eu tenho 37 anos e minha amiga de 24, que faz o mesmo processo que eu, tem um apartamento enquanto eu não consigo nem alugar um quarto. Vou percebendo que é necessário resistir, entendendo que meu trabalho é muito bom, bem elaborado e que não vou deixá-lo pra trás por conta desse racismo estrutural. (Na Universidade) O autor que a gente tem como referência é o homem cisgênero privilegiado, que cria os discursos. Eu saio do registro do homem branco e faço outros caminhos, tomando posse do meu corpo e construindo a narrativa dele dentro desse espaço. É a busca de uma escrita em que eu não uso mais essas referências, mesmo sabendo que elas estão impregnadas no meu corpo por conta de uma formação acadêmica. Eu fui jubilada em dois cursos de artes em Salvador, na Escola de Belas Artes e na Escola de Dança, e esse é um dado que tensiona e fricciona essa coisa do academicismo e da arte. Fui jubilada porque quis fazer uma escrita em que eu não citava homens brancos, e também em busca de algo experimental, uma escrita de si, mas não rolou.

OP - Atualmente, vemos assimilação de pautas e demandas de grupos minoritários por meios hegemônicos. Como você avalia esse processo?

Musa - A gente vive o capitalismo neoliberal. Dentro dele, tem as listas de demandas, que estão sendo cumpridas. O que eu sinto é que não temos um retorno rápido em relação a esses conteúdos que estão sendo disponibilizados agora. É importante que todas as pessoas acessem esses conteúdos, do meu ponto de vista, independente de cor, credo, classe, enfim. São discussões importantes, mas ao mesmo tempo há a perversidade do neoliberalismo: eu tenho acessos, inserções, só que é tudo mentira, ainda vivo um processo de precarização da minha vida. É a contradição neoliberal e capitalista que a gente está vivendo. É muito cedo pra dizer quais os efeitos desse processo, mas acho que é muito importante colocar essas pautas pra frente e sair de um lugarzinho fechado, entendendo a contradição que é.

OP - Em um período de 2017, vimos a arte sendo motor para diversas discussões políticas em âmbito nacional, inclusive envolvendo seu trabalho (além do Prêmio Pipa, ocorreram os casos da exposição Queermuseu, por exemplo). Como você avalia o cenário daquela época e o impacto dele na sua própria obra, que lida com nudez e discussões de gênero?

Musa - Esse processo que a gente está vivendo no País tem a ver com a queda política de quase 20 anos de esquerda no poder. Durante esse tempo, houve um fomento em relação à produção de dissidentes. A queda da Dilma, o desmanche de aparelhos públicos, os setores de segurança, saúde, educação sendo desmantelados... A sensação que tenho é que a direita do País, que sempre foi reacionária, racista e misógina, se colocou pra fora e a gente só teve uma resposta. A gente está vivendo uma quebra neoliberal em que as direitas mais extremas estão tomando conta de novo do sistema social e isso tem a ver com o controle dos nossos corpos, conteúdos. Só que tem a contrapartida dos quase 20 anos, dos grupos dissidentes que se organizaram mal e porcamente, mas conseguiram. Eu sou filha de um governo de esquerda, só pude acessar a universidade através do processo de Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), fui bolsista pra acessar a elite de arte estudantil. O que tô vivendo agora é reflexo de um processo. Dentro disso, sinto que há muito ódio. Nosso País sempre foi muito odioso, as diferenças são muito explícitas. (Com o caso do Prêmio PIPA) Eu consegui perceber que tenho uma rede afetiva, mas também que tem uma galera que não gosta do meu trabalho. É isso, 50% e 50%, coisas boas e coisas ruins. Eu tô com uma hiper-visibilidade que não imaginava que conseguiria alcançar.

OP - Com todo esse contexto, das respostas agressivas ao seu trabalho, do momento de assimilação de demandas, qual você considera ser o papel que a sua obra cumpre?

Musa - Meu trabalho artístico está todo permeado por dor, violência e experiências de quase-morte. Tem muito ódio nele, mas ele tá tão organizado, que é feito com muito amor. Então… (pausa longa). É isso… (chora) A gente tá num momento agora de organizar o ódio e viver o amor. Entender que somos muito, muito diferentes, e perceber as delicadezas e as sutilezas dos encontros. Eu não posso, mesmo sabendo que o País é estruturalmente racista, já chegar com toda a violência que o racismo promove contra o meu corpo. É sobre como eu organizo esse ódio e recebo em troca amor. Pra mim, vir pra cá e perceber a situação política até desse grupo que eu vim fazer parte, perceber coisas da Cidade, foi surpreendente. Foi muito forte perceber que tem um grupo de mulheres que são mais ricas que eu, mais empoderadas no sentido financeiro, porque são brancas, que se organizaram pra me trazer pra cá (ao EIIC). Isso é uma prova que, mesmo com muito ódio, é possível organizar amor, sabe? É nesse sentido que eu percebo que meu trabalho reverbera. É isso.  (voz embargada).

PERFORMANCE

Um dos destaques da estadia de Musa em Fortaleza foi a apresentação de Merci beaucoup, blanco!, performance de sua autoria que foi apresentada na abertura do III Encontro Internacional de Imagem Contemporânea. Nela, a artista pinta o corpo negro de branco.

 

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