Em A Normalista, romance publicado em 1893, a triste sina da protagonista Maria do Carmo é o pretexto para Adolfo Caminha nos apresentar as miudezas da Fortaleza do fim do século XIX. As ruas principais da Cidade, o Passeio Público, o trilho, o Pajeú, o Mucuripe surgem aqui, ali, sugestivos e pitorescos. Seja no detalhamento dos ambientes ou na crítica dos costumes, o escritor delineia os aspectos particulares desta remota Fortaleza, que, não raro, se entrelaçam com a própria trajetória dos personagens do romance – e por que não dizer com nossa própria história na cidade?
“Adolfo Caminha escreveu um livro de vingança contra Fortaleza e seus habitantes, sendo censurado por muita gente. Para dar realismo às cenas, teria que pintar a Cidade tal como a encontrou por volta de 1888. A descrição do Passeio Público expõe a Cidade ao ridículo, não?”, aponta Sânzio de Azevedo, crítico literário cearense. Para Caminha, este era o lugar onde “toda uma geração nascente, cansada de uma vida monótona, ia espairecer aos domingos e quintas-feiras”; um centro irradiador do que acontecia na Cidade, dos amores clandestinos aos boatos. Em estilo neoclássico, a praça foi construída em 1890 e esteve abandonada por muitos anos até a sua última revitalização, em 2007. Além da discreta vista para o mar, o local conta hoje com uma concorrida feijoada aos sábados.
Fortaleza aparece, sob olhar do escritor cearense, como uma cidade onde o tempo ainda é marcado pelo “sino da Sé” (Igreja de São José, hoje Catedral Metropolitana), ou pela “corneta do Quartel”. O quartel, localizado onde hoje se encontra a 10ª Região Militar, era de onde se podia ouvir a toada dos soldados ao fim da noite, em meio ao suave marulhar da praia. Aliás, o mar aparece em diversos trechos, quase como um personagem sempre à espreita. Tiago Cavalcante, professor do Curso de Geografia da UFC, explica que a Cidade se voltava para a praia, na esperança do moderno, ao mesmo tempo em que carregava uma “alma sertaneja”, provinciana. “No século XIX tínhamos uma cidade que crescia acompanhada das migrações, e a maior parte das pessoas que chegavam aqui vinha do interior do Estado”, conta.
A antiga Escola Normal Pedro II, hoje ocupada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), na Praça José de Alencar, data de 1884. A instituição se destinava à formação de professores para as escolas do Estado. É lá onde vai estudar Maria do Carmo, a normalista de Caminha, logo depois de ter saído do Colégio Imaculada Conceição, de tradição religiosa. Depois de todas as mudanças que esta escola viveu, as lembranças de quem passou por lá resistem ao tempo. “Dá uma saudade enorme! Nessa época a gente era tão romântica, tudo era poesia, tudo era amor”, conta Simone Cabral, que concluiu o Curso Normal no começo dos anos 1960.
Para Sarah Diva, professora do Curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará, na narrativa romanesca “a vida dos personagens está muito atrelada ao lugar onde moram. O naturalismo pode ser visto nesse vínculo indissociável entre criatura e espaço, porque as possibilidades de futuro são, de certa forma, limitadas pela configuração do ambiente: classe social, trabalho etc.”. Os esforços de urbanização deixaram marcas na literatura, com muitas obras que nasceram em meio a despretensiosas jogatinas entre amigos. Muito antes dos bares temáticos e pubs comporem a vida noturna da Cidade, a mocidade “elegante e intelectual” tinha no Café Java seu ponto de encontro obrigatório. O quiosque, localizado no ângulo nordeste da Praça do Ferreira, reunia a boemia literária e presenciou a efervescência produtiva de destacados escritores cearenses.
Outro aspecto que não passou ileso à crítica de Caminha foi o transporte: “Às portas da Maison Moderne (antiga loja de produtos parisienses), famílias esperavam os bondes em pé, silenciosas, com ar de infinito aborrecimento”. Puxados por dois burros e trafegando das 6 às 21 horas, eles eram o que havia de mais avançado em mobilidade urbana. Da Praça do Ferreira saíam, dirigidos por um boleeiro, rumo ao Rio Branco (Joaquim Távora), Benfica e Alagadiço (Bezerra de Menezes) procurando se defender do sol e, ainda que raramente, dos pingos da chuva. Nos bondes ou nas páginas de Caminha, Fortaleza aparece como essa cidade provinciana que ensaia, dia após dia, seu próprio caminho para o progresso.
Quatro livros para conhecer outra Fortaleza
A AFILHADA - OLIVEIRA PAIVA (1889)
Maria das Dores e Antônia protagonizam o paralelo deste romance. A primeira é uma moça bem nascida. Antônia, sem condição de ser criada por seu pai biológico, morou a vida toda na casa dos padrinhos. As personagens, repletas de moral burguesa, expressam sentimentos existentes pela sociedade fortalezense no final do século XIX.
AS TRÊS MARIAS (1939)
Neste romance publicado por Rachel de Queiroz em 1939, além da amizade profunda entre Maria Augusta, Maria José e Maria da Glória, várias paisagens urbanas de Fortaleza são descritas, como o Colégio da Imaculada Conceição, onde as três se conhecem.
MISSISSIPI - GUSTAVO BARROSO (1961)
É através do personagem João Mississipi que Gustavo Barroso constrói a sua trama, que perpassa pela modernização de Fortaleza, nas fases iniciais de seu processo de urbanização, no começo do século XX. Os diversos lugares citados nos levam a uma viagem ao tempo da belle époque.
RELEMBRANÇAS - MILTON DIAS (1985)
A obra reúne crônicas escritas a partir de 1958, em que Milton Dias revela suas impressões da cidade que o acolheu ainda criança e relembra sua juventude. Os textos se ambientam em locais importantes da cidade, como a Praça do Ferreira, e apresenta crônicas em que o autor declara seu amor à Fortaleza.