Coco é canto. É uma roda à beira da praia embalada ao som de pandeiros, ganzás, agbês, surdos e triângulos. No ritmo cadenciado das palmas, por vezes dos tamancos (se tivermos como base o grupo pernambucano Raízes de Arcoverde), o mestre puxa o mote em versos que, a depender do tema, levanta a poeira e faz os brincantes esquecerem até a lida do dia seguinte. O coco, porém, tem suas nuances. Muitas, diga-se de passagem. “Coco de embolada é diferente do coco de roda/ Coco de roda não é coco de embolada/ No coco de improviso canta quem sabe rimar/ Quem canta fica calado, quem não sabe quer cantar...”, como frisa o alagoano Jacinto Silva. Coco de zambê, de xambá e de usina são outras das inúmeras denominações do ritmo, a depender de sua localização e demais peculiaridades.
Coco é dança, aliada ao trabalho. “É um folguedo rico e expressivo. Envolve uma mescla das culturas indígenas com herança africana e mistura percussão, dança e improviso”, confirma o pesquisador cearense Gilmar de Carvalho, que também ressalta a importância da manifestação – amplamente disseminada no Nordeste brasileiro – como “elemento catalisador dos grupos, reforçando vínculos”. Os cocos praticados no Ceará, de acordo com o músico e antropólogo pernambucano Ninno Amorim, são bem heterogêneos. É dele a dissertação intitulada Os Cocos no Ceará: dança, música e poesia oral em Balbino e Iguape , defendida durante o Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2008.
[SAIBAMAIS]“Posso afirmar que o que ele têm mais em comum é a denominação de ‘coco’ para defini-los. Os elementos que compõem essa manifestação cultural diferem bastante tanto entre os cocos praticados no litoral, quanto entre os grupos do sertão e do Cariri cearenses. Esta constatação da heterogeneidade serve para os grupos de coco do Ceará entre si e para perceber também as diferenças entre os grupos cearenses e os cocos praticados em outros estados brasileiros”, explica o antropólogo. “Para falar em semelhanças, cito a presença de instrumentos de percussão, a dança em grupo e as letras formadas por versos e refrões que são repetidos pelo coro”, complementa Ninno.
E coco é também resistência. Desde o dia 5 de maio, o Teatro Carlos Câmara (Centro), juntamente com o projeto “É o Gera”, abre espaço para os cocos por meio do Encontro de Raízes . A cada sábado de maio, grupos que evidenciam o ritmo em questão têm vez não só trazendo seu canto, mas também disseminando seus respectivos bailados em vivências no pátio do local. Ao longo da programação, sempre com início a partir das 15 horas, se apresentaram três grupos (Coco do Iguape, Coco do Pecém e Coco dos Estevão); no encerramento hoje, 26, será a vez do Coco Caetanos de Cima, que excepcionalmente vai se apresentar na comunidade do Oitão Preto (Moura Brasil).
[QUOTE1]“Quando iniciamos a conversa sobre o ‘É o Gera’ , tínhamos e ainda temos um cerne de inserir de forma ampla a periferia em nossa programação. E não apenas como público, mas ocupando os palcos. A periferia é diversa, ela não tem apenas o reggae e o hip hop. As manifestações da cultura popular e seus grupos também vêm desse lugar. Logo, não fazia sentido deixar a cultura popular de fora desse diálogo. Por isso o nome do projeto: porque buscamos dar destaque às raízes que constituíram e ainda pulsam nas periferias, como a cultura dos povos negros e indígenas. Daí a articulação da cultura popular com o reggae”, destaca Laís Santos, 29, uma das produtoras responsáveis pelo projeto Encontro de Raízes.
Brincante de reisado, maracatu cearense e tambor de crioula há cerca de dez anos, Laís integra, desde 2017, o grupo Na Quebrada do Coco ao lado de Adriano Kanu, Daniel Leão e Lucas Vidal. Movida, segundo ela, pela paixão do quarteto pelo ritmo. “O grupo foi surgindo de forma natural porque nosso intuito não é apenas fazer show. Queremos brincar e, assim, contribuir para que o coco cresça cada vez mais. Foi em Fortaleza porque é aqui que vivemos. Não poderíamos fazer como os grupos do litoral. Não seria verdadeiro porque não somos daquela realidade específica. Mas não quer dizer que estamos inventando algo novo. Apenas brincamos à nossa maneira, inspirados pelas mestras e mestres, mas também a partir de nossas vivências”, explica.
[FOTO2]O coco consegue, em meio às novas tecnologias, seguir firme com sua tradição? Para Gilmar de Carvalho, sim. “Felizmente, temos mestres importantes e brincantes animados. O futuro do coco está garantido pelas novas gerações. Pesquisadores levantam o coco e as perspectivas são otimistas. Ele tem sido objeto de atenção por parte de instituições que valorizam as tradições e, consequentemente, este folguedo. Importante que o coco se encaixe numa perspectiva que contagia as plateias, que muitas vezes cai na dança, mesmo sem saber dançar de acordo com as regras”, pontua.
Para Ninno Amorim, porém, o ‘entrave’ reside na falta de incentivos e uma visível distinção/inferiorização da cultura popular em detrimento de uma “oficial”. “A ‘inferioridade’ da cultura popular não está nas pessoas que a praticam ou nas suas crenças e costumes, mas no sentimento nacional brasileiro que não gosta dos pobres, que tem vergonha dos negros, dos indígenas e de qualquer grupo identificado com o termo ‘tradicional’. Como são as elites que decidem os rumos do orçamento público, jamais darão prioridade a esses grupos”, conclui.
Encontro de Raízes – Projeto É o Gera
Atrações: DJ Lua Campigotto, grupo Coco Caetanos de Cima e DJ Josiel Sockingston %2b oficina de turbantes “Entre Dandaras e Simoas: Fazendo a Cabeça com Nossas Ancestrais”, com Dayze Vidal
Quando: hoje, 26, a partir das 17 horasOnde: Comunidade do Oitão Preto (Moura Brasil)
Programação gratuitaOutras informações: @teatro.tcc (Facebook)