SABYNE,
Muitas são as formas de nomear nas artes
...talvez a expressão arte contemporânea esteja datada. Atravessamos uma transição nesta virada de séculos, do XX ao XXI, pautada por outras preocupações entre os artistas, muito provavelmente passaremos a nomear as artes desses novos tempos de: artes da descolonização, ou artes para a descolonização. Os museus, instituições de arte, já estão sendo convocados a repensarem seus critérios de musealização a partir da descolonização, tal perspectiva vai exigir mudanças importantes na ação museológica.
É nesse lugar que vejo o seu trabalho de pesquisa em artes, em especial, o seu projeto Corpo-móvel. E a exposição que trazia a pergunta: VAI PLANTAR BATATAS?, que aconteceu no Museu Mataquiri, na Moita Redonda, em Cascavel. No seu trabalho você descoloniza o pensamento, ao criar a partir do perspectivismo ameríndio uma leitura que desmonta a expressão vá plantar batatas.
Primeiro você faz uma pergunta: Vai plantar batatas? Essa pergunta nos ajuda a pensar na historicidade dessa expressão, no lugar de fala de quem a pronuncia e para quem fala. Plantar batatas é uma expressão do colonizador. Quais os povos eram os maiores conhecedores do cultivo de batatas? A grande diversidade de tipos de batatas é nativa do território hoje nomeado de América Latina. Os povos que habitavam este território hoje conhecidos como povos indígenas dominam as práticas de cultivo das batatas, inclusive por reconhecerem seu poder sagrado e sua dimensão humana.
[QUOTE1]Entretanto, esta expressão atribuiu àqueles que dominam o plantio das batatas a condição de preguiçosos, ou seja, mandamos plantar batatas àqueles que entendemos não estarem fazendo nada de útil, como com relação aos artistas, por exemplo, na situação contata por você Sabyne.
Quando você decide ir plantar batatas na Moita Redonda e criar a experiência do Museu Mataquiri, você começou a desmontar a expressão elaborada pelo colonizador e passa a montar outra vez uma conexão com os saberes relacionados ao plantio das batatas a partir de um perspectivismo ameríndio, trazendo a dimensão do corpo-móvel às batatas.
Em pesquisa a antropóloga Gabriela Morim de Lima a respeito do cultivo das batatas doce com as mulheres krahô, elas dizem: “Ra i mã Jàt h%u0129rõt!: Batata já brotou para mim”, ou seja, as batatas não nascem elas brotam para alguém. Para elas as batatas são vivas, por isso existem rituais, cantos, aprendidos com as mais velhas a respeito da relação corporal e afetuosa com as batatas. As batatas são de conhecimento das mulheres, geralmente as mulheres mais velhas já com filhos e netos são as que guardam grande sabedoria a respeito das batatas doce e a criação dos parentescos.
A sua pesquisa Sabyne, me aproximou desse aprendizado, a sua criação artística criou parentescos a partir das batatas, nos convidando a plantar batatas no Museu Mataquiri, ao ver as batatas doce nos armários, nos móveis carregados de afetos entre mulheres, história de vida, nos fazer repensar o lugar dessa frase, pois a batata não nasce, ela brota. Ela brota somente para as mulheres que são de grande valor. Seu trabalho nos trouxe através da arte um olhar para a grandiosidade de quem faz brotar as batatas.
Sabyne, que possamos continuar descolonizando de maneira permanente o pensamento, as expressões e as nossas práticas. Agora, finalizo esta carta citando a Gabriela Morim de Lima, mais precisamente a fala do ancião:
“Batata gosta da mulher, e a mulher gosta da Batata. Ela está sempre mexendo, lembrando do rumo da Batata. A mulher anda no rumo do pensamento da Batata”, disse o ancião Olegário Tejapôc Krahô.
CAROLINA,
começo respondendo a sua carta me apresentando,
[FOTO2]
...sou Sabyne e nasci em Fortaleza no ano de 1969. Estou em transição com o universo, a cada instante posso transformar o pensamento artístico. Percebo que a arte tem muitos rótulos e não consigo me encaixar apenas num tipo de ação. Meu processo criativo está conectado com a ausência e a presença nos afetos e sentidos que a vida apresenta. Na infância viajava muito a Juazeiro do Norte lá me encantei com as romarias e quermesses, e os encantos do padre que move milhões de romeiros com sua fé em busca de paz e amor! Diva Maria, minha mãe foi a grande mestra, ela colecionava arte popular e antiguidade! Sempre visitava as casas ateliês de artista e sempre frequentava as feiras. Tinha uma loja na Encetur que vendia artesanato da América Latina! E foi na escola que ela teve que cresci fazendo arte, tenho um relatório que a professora disse que seria pintora e estou a pintar a paisagem.
Antes de concluir o segundo ano do ensino médio, larguei a escola e fui morar em Londres, foi entre 1989 e 1992 e, por lá tive a sorte de ser introduzida na arte, onde comecei a perceber outras dimensões entre ser artista de galeria, circuito de museus e, o circuito interno dos independentes assim como os artistas de rua. Um amigo com quem dividi um squat [ocupação] estudava fotografia na Sant Martins, ali foi o meu encontro com os mundos da arte. Conheci o Rob que morava no squat chamado de Vicarage, ali fui introduzida a vida alternativa de Londres, cheia de punks, new age, banda de rock, pintores, atores, ativistas. Viajei com uma caravana do Vicarage pro festival de Glastonbury, mas antes passei a noite no Solstício de verão em Stoneheng. O Rob me introduziu a feira de Porto Bello, ali vendíamos os objetos que coletávamos no lixo. Também fiz trança com linhas nas feiras de Candem Town e Coven Garden. Quando meu squat fechou fui morar em outro squat com duas italianas e a Alexia fazia arte contemporânea, uma inglesa e duas amigas da Nova Zelândia numa casa onde cada uma tinha seu quarto e com um jardim lindo onde se fazia fogueira nas noites frias de verão! Ali foi minha despedida de Londres.
Voltando ao Brasil fui trabalhar com o projeto do meio ambiente da escola onde criei uma sucatoteca com os alunos. Comecei a estampar tecidos e fazia roupas e bolsas com a mesma costureira que fazia minhas roupas e as roupas da minha boneca. E, depois dessa temporada fui morar na Kunstholen Thorstedlund, Frederikssusd, Dinamarca. As aulas eram pela manhã e a tarde os ateliês eram abertos para continuar sua prática. Lá fiz o curso de pintura, desenho, gravura e aprendi a fazer feltro. Quando cheguei em Fortaleza fiz o curso de Artes Visuais na faculdade Gama Filho, quando conclui a faculdade fui morar em Guaramiranga, onde montei um ateliê de gravura na casa que morava e dei aula aos jovens e adultos do local.
Quando estudei e residi na escola de arte no campo da Dinamarca, percebi que aquela prática pode ser realizada aqui e em outros lugares porque foi o ambiente que identifiquei como vivo. Estamos construindo o espaço com semelhanças aquela escola. Fui convidada para coordenar o Ponto de Cultura na Moita Redonda, durante um ano. Morava na casa do projeto quando eu, Tércio e, Tom, nosso filho, encontramos a casa de 1929 que estava a venda, foi encanto à primeira vista. Ali moramos de 2008 até 2015. Em 2009 o Tércio Araripe realiza o Grupo Uirapuru - Orquestra de Barro que começou na casa de 1928 e depois construiu uma casa de taipa para acolher o uirapuru! Em 2015 a casa é cedida para o Mataquiri Museu, escola de arte e residência artística. O museu surgiu também da necessidade de expor meu trabalho e reunir pessoas e opiniões.
Na infância, meu contato com a agricultura foi na fazenda dos meus avós, ali convivi com os moradores, cozinhava, fazia lingüiça, queijo e doce com minha avó, fazia fogão no quintal. O que mais me encantava era a colheita de algodão e andar a cavalo. Sempre participava de hortas e jardins que minha mãe criava. Em York trabalhei na colheita de morangos e lá comecei a compreender o consumo sem veneno e sem estragos. Foi nos campos da Finlândia que fiquei mais próxima da terra. Durante um encontro de Eco vilas e comunidades alternativas conheci um casal e fui trabalhar na fazenda que ficava próximo ao mar, lá plantavam: calêndulas, ervilhas, tomates e flores comestíveis. Quando morei em Guaramiranga fiz uma horta orgânica, foi a única vez que passei uma temporada comendo quase tudo que plantava de legumes e verduras. Planto árvores desde que mudei para Moita Redonda e deixo as árvores nativas da restinga ocupar o terreno e em 10 anos formou um bosque onde o microclima é presente. O contraste entre as diferentes terras que passei é que a Moita redonda foi a mais árida em todos os sentidos. Quando chegamos havia água na cacimba, mas devido o desmatamento na região as cacimbas secaram e passei dois anos no verão comprando água que era entregue numa carroça, até que um dia cavou um poço de 67M de profundidade. Hoje a água é em abundância.
O local é propicio ao silêncio e a outro tempo, um tempo passado! Vivo no meu ritmo. Aqui é nossa casa ateliê que abrimos pra viver a arte em liberdade! O grande museu a céu aberto que é a Moita Redonda me leva a tradições presentes na memória coletiva da arte. Onde o ancestral ainda é cultuado entre as barreiras e mistérios da arte, está presente no dia a dia do lugar, um fazer completamente dependente da natureza...
A Moita Redonda tem semelhança no modo de fazer cerâmica com outros territórios, vejo no Paraguai, no Vale do Jequitinhonha e na Amazônia a mesma sabedoria, o barro é um elemento universal.
Através da convivência os afetos formam teias de interesse comum onde a diferença do outro fortalece sua arte e enriquece os momentos e encontros. O Uirapuru Orquestra de barro agregou valores e pessoas, e este movimento nos fez interagir com um público mais amplo, abrindo o local para escola, museu e residência. É a música quem rege e sustenta o espaço!
A colheita é presente nas duas ações: seja no plantio ou na memória de objetos que coleto no percurso, como no trabalho Ruínas da Prainha; que eram os azulejos da fachada da igreja Nossa Senhora da Conceição da Prainha em Fortaleza. O projeto pesquisa Corpo Móvel é parte da coleção da minha mãe de objetos e móveis onde monto uma instalação que ficava na sala do Mataquiri museu ao vivo para uma sala do MAC no Dragão Mar ao mesmo tempo, foi a conclusão da pesquisa Corpo Móvel que aconteceu no Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema.
Durante o projeto Corpo Móvel resolvi plantar batatas diante da política fascista que convivo nas instituições de arte. Até que reina o descaso e no final de tudo o assistente ganha melhor que o artista. Na época, o Porto Iracema queria cortar a bolsa do artista, comecei a sentir que estavam me mandando era plantar batatas. E fui, depois de 3 dias o Temer mandou os artistas irem plantar batatas. No começo ia germinar trigo, mas as batatas falaram mais alto. Comecei germinando na sapateira antiga que era do mercado de Cascavel, parecia pares de sapato brotando das prateleiras isso ainda no Mataquiri, quando fui montar no MAC Dragão do mar comecei a cavar a parede, porque, além de plantar, queria expandir a parede do museu, mas não foi possível naquele momento. Minha mãe colocava batatas para germinar na água.