Talvez o ano tenha sido assim, um acidentado percurso de pedras, algumas à mostra, outras submersas, sobre as quais passamos muito perto sem atinar para o risco do corte. Mas resisto ao balanço, corro longe da síntese. Ocioso apanhar os dias numa frase, reuni-los como se correspondessem a uma só coisa: não são.
Os dias, passados e futuros, são todos da mesma qualidade indefinida, vaga, da qual esperamos o que não virá, certos de que a sorte está traçada em algum lugar que não sabemos. Quase tudo é movediço. Mal encostamos os pés, as superfícies cedem, mínimo que seja.
Nessa viagem estive sempre muito presente, os olhos grudados no agora, as mãos alcançando objetos, as costas lagarteando no sol, os braços pinçando fundo na areia escura do mar daquela praia uma concha ou um búzio para a filha brincar, as pernas ocupadas em longas caminhadas.
Bichos do mar, eu pensei, podem ser assustadores, mas, trazidos à luz, postos em contrapelo, perdem encanto. Atraem por estarem no mais longe, apenas.
Desfazem-se rapidamente em pernas e braços de vulgar simplicidade.
Depois foram horas andando na areia frouxa enquanto reparava nas formações das falésias. Resisti a procurar no celular um significado geológico para tudo que se acumula e sedimenta, somando-se em seguida em estratos multicores: um tom de laranja, outro mais escuro e um próximo do vermelho. Um morro amarelo mais isolado atrás do qual o sol se punha toda tarde. Era uma cena bonita pela qual esperava. Um dia, porém, choveu. Perdi o lusco-fusco, mas ganhei o azul denso da tarde sem transição entre dia e noite.
E foi assim que chegamos ao final, um apagamento das horas após dias exposto ao calor, a névoa que se forma na cabeça com a fumaça do cigarro e o vinho. Acostumado a medir bem as horas e os dias, a ter com o tempo uma relação beligerante, estava então totalmente à mercê de uma languidez. Havia muito não experimentava o gratuito, o ordinário, o fluxo.
Deixara pra trás o corte na perna, agora me preocupava somente o excesso: do sol, da cerveja, desse tempo largado que desregula a vida numa vila de pescadores cuja rotina faz-se apenas nessa toada de marulho e onda. Massa de água que rebenta, massa de água que retorna.
Sentamos pra comer. À beira da praia duas mulheres fincam mesa e cadeiras enquanto a maré vai enchendo. Sorriem, beijam, abraçam. O garçom repõe a cerveja. Depois serve um prato de camarões. Elas agradecem chamando-o pelo nome, em modos de intimidade.
De repente a água já está a seus pés. Levantam de susto, a mesa carregada pela onda, as cadeiras emborcadas no chão. Salvam apenas o isopor da cerveja. É fim de tarde, e estão felizes.
Henrique Araújo
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