Nos anos 1940, Fortaleza recebeu bases militares norte-americanas e imponentes "balões prateados" sobrevoavam o céu da Cidade de ares ainda interioranos. À bordo dos "blimps", os soldados ianques ganhavam as ruas da Capital e eram uma novidade quase impossível de não ser notada. Os anos da Segunda Guerra Mundial povoam o imaginário de Tangerine Girl, curta-metragem cuja história se baseia em um conto de Rachel de Queiroz. Produzido em 1998, o filme narra a história de uma jovem que se encanta por um desconhecido marinheiro que lhe atira presentes do alto de um dirigível.
Rachel de Queiroz morava no Rio de Janeiro quando escreveu o conto, cuja narrativa se passa no interior do Rio Grande do Norte. Na adaptação para o curta-metragem, porém, o enredo de Tangerine Girl é ambientado na Fortaleza dos anos 1940, e algumas de suas cenas gravadas no histórico Sítio Lucas, berço da cidade de Beberibe. Na trama, uma jovem que se entusiasma com o diferente - seja com o "prodígio mecânico" cortando o céu de seu quintal, seja com todo um novo mundo "americanizado" com o qual ela passa a sonhar.
Além de Karla Manso no papel principal, Emiliano Queiroz, Cláudia Mauro, Kiko Mascarenhas, Tadeu Melo, Fernanda Quinderé e Paulo César Grande fazem parte do elenco. A direção do curta é de Liloye Boubli, que rodou Tangerine Girl no litoral cearense e, de forma poética, também contou um pedaço da história de Fortaleza - a fotografia de Fernando Duarte imprimiu parte da nostalgia dos anos 1940 no filme. O curta foi apresentado no Festival Sundance nos Estados Unidos e ganhou o prêmio de Melhor Direção de Arte do Festival de Cinema de Fortaleza, em 1998.
Sem o mesmo ruído e a velocidade dos aviões de guerra, os dirigíveis despertavam a curiosidade em uma Fortaleza ainda provinciana. Os blimps sobrevoavam dando voltas lentas sobre a Capital na mesma época em que ela começava a conviver com os lampiões a gás e os primeiros carros nas ruas. A cada dia, também a protagonista de Tangerine Girl se deixa levar pelo encanto que os dirigíveis exerciam sobre sua imaginação: achava-o lindo na sua cor prata, reluzindo ao sol, "como pássaro manso que abandona o poleiro num ensaio de voo".
Conta a narradora que, visto do alto do dirigível, o cabelo da moça "tinha um brilho acobreado de tangerina madura". De início, a pequena não atinou bem com aquele Tangerine Girl escrito no bilhete jogado pelo marinheiro desconhecido, embora depois o tenha aceitado com certa lisonja. Rachel ainda suspeita que o apelido tenha alguma ligação com os filmes de Dorothy Lamour - já que Dorothy Lamour é, "para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das Ilhas do Pacífico", observa a narradora.
Em Tantos anos, livro de memórias de Rachel e sua irmã caçula, Maria Luiza, elas rememoram os anos vividos no histórico Sítio Pici, que sediou a antiga base militar estadunidense em Fortaleza. É no capítulo "A base aérea" que Maria descreve seu primeiro contato com um "blimp": "Estava ancorado, prateado, refletindo o sol da manhã. Subi num galho de cajueiro e lá fiquei, talvez horas, no medo de que aquela visão fosse uma miragem. Depois desse vieram outros que passavam de revoada sobre a nossa casa", lembra.
Com essa história de "Blimp", Rachel construiu o enredo de Tangerine Girl, eleito um dos cem melhores contos do século XX, em coleção organizada em 2009 pela Editora Objetiva. Voando bem baixinho e devagar, a novidade cruzou os céus de Fortaleza e deixou muitas lembranças inusitadas na memória da Cidade.