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Paisagem da janela
Vida & Arte

Paisagem da janela

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A Demétrio Jereissati

 

Eis que nestes duros tempos, quando só se espera o pior, em meio à serragem dos dias, encontra-se um cacho de uvas. Uma delícia feita de três coisas que muito prezo: arquitetura, fotografia e poesia. Recentemente, numa de minhas muitas e prazerosas visitas ao escritório dos meus colegas e amigos José e Francisco Nasser Hissa, deles ganhei um belo livrinho, A Poética das Janelas, assinado por Demétrio Jereissati e pelo grande poeta e amigo de longa data Luciano Maia. Folhear suas páginas me fez lembrar Mário Quintana: "Quando abro a cada manhã a janela do meu quarto é como se abrisse o mesmo livro numa página nova". Quanta beleza encontrei ali, em forma de luz, sombra, cor, palavra e prédio. Como é bela a polifonia das artes quando irmãs.

 

Tem razão Drummond: "O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar". Desde cedo, aprendi com meus mestres que uma das ações mais complexas do meu difícil ofício é a fenestração. Sim, porque a janela não serve apenas ao olhar. Há a de iluminar, a de convidar o vento a entrar, a de fazer o ar quente sair, a de esconder o dentro do curioso de fora, entre tantas outras mais. E como são belos seus nomes: báscula, gelosia, óculo, pivotante, seteira, veneziana. Além das funções de iluminação, ventilação, exaustão e comunicação entre interior e exterior, a janela também cumpre a de elemento constituinte dos panos das fachadas. Ou seja, é um elemento fundamental à composição geométrica e artística da arquitetura. Sim, forma, função e sentido.

 

Quintana gostava do assunto: "Quem faz um poema abre uma janela". Na obra, a fotografia provoca a poesia usando a arquitetura como mote, desafio lançado pelo olho de um ao pensamento do outro. Vivo fosse, diria Pound: uma feliz conjunção entre fanopéia, logopéia e melopéia. As imagens se sucedem num ritmo que alimenta as estrofes do longo poema. Janelas simples, rebuscadas, emolduradas, decoradas, de madeira, gradeadas. 

 

Paredes de tijolo, de taipa, terrosas, de pedra, de azulejos portugueses, suburbanas, descascadas. O estro certeiro: "O tempo fotografa a hora certa em que a janela permanece aberta"; "Quanta memória, quanta coisa bela pode hoje ainda abrir uma janela?"; "Desde que ela partiu, esta janela fechou-se dentro do silêncio dela"...

 

Talvez Francisco Alvim, ao dizer que "quem tem janelas que fique a espiar o mundo", concorde com Nelson Rodrigues quando este, certamente pesaroso, afirma: "A televisão matou a janela". Acostumamo-nos a perder demasiado tempo olhando para telas de computador, celular e TV, curtindo as imitações da vida, e nos esquecemos da própria vida, que está bem ali, ao alcance de uma mera olhadela. O livro é daqueles cuja leitura nunca finda, sempre nos dirá algo novo, um detalhe não percebido, uma palavra que acende uma coisa boa em nós, companheiro das noites em que a mesa de cabeceira é a mais fiel companheira. Fecho-o e abro a janela do meu estúdio no Joaquim Távora. 

 

Lá fora, o jasmim ousa florir num dia de medo. Exemplo, façamos todos como ele.

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