Estudiosos da música brasileira, Tárik de Souza e Zuza Homem de Mello, discorrem sobre a importância de Cego Aderaldo, composta por Baden Powell
Tarik de Souza: "Em plena era do banquinho e violão da Bossa Nova, Baden Powell dinamitou os limites e reinventou o instrumento, incorporando em seu toque, do erudito ao folclore, choro, afro-samba, nordestinidades e jazz. Na homenagem ao mitológico cearense Cego Aderaldo, em memorável faixa do disco 27 Horas de Estúdio, ele alterna pinceladas rústicas e vibrantes, esculpindo aos poucos o perfil acre-lírico do artista, até desatar no ritmo entoado da cantoria, idioma primal de Aderaldo. O bordado de acordes suspensos no ar ralenta até espraiar-se como um pedestal para o grande artista popular - celebrado por outro, um dos maiores violonistas do planeta em todos os tempos."
Zuza Homem de Mello: "A composição e a execução de Baden estão calcadas na marca predominante da música nordestina, na qual a rabeca e o berimbau ocupam lugar de destaque entre os instrumentos melódicos. Deve-se lembrar que na rabeca o músico pode deslizar ligeiramente o dedo que prende a corda para produzir um som impuro quanto ao rigor da execução. Notas assim emitidas dão uma sensação de desafinação semelhante ao som da voz humana nos desafios nordestinos. Ambos, instrumento e voz, têm relação direta com a música moura de poderosa influência na música nordestina, seja nas escalas com acordes de notas bemolizadas (sobretudo o terceiro e o sétimo grau), seja nas melodias em que cada nota parece ser propositadamente recuada para um som mais grave em busca da nota bemolizada, isto é meio tom abaixo. Ora, quando se ouve duas notas emitidas exatamente ao mesmo tempo num intervalo de segunda menor, o que soa é uma dissonância. Se, porém, as duas notas forem emitidas uma após a outra com uma imperceptível diferença de tempo, tem-se como resultado a base mais marcante da música moura e portanto a essência da música nordestina, justamente o que Baden Powell usa na primeira parte de Cego Aderaldo. A segunda é marcada pelo ritmo que tem a mesma clave do côco e do baião, bem diferentes do samba embora conservem o forte impulso da síncope de origem marcadamente africana".