"As jandaias cantavam ainda no olho do coqueiro; mas não repetiam já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra". Nas linhas finais de Iracema (1865), renomado romance alencarino, o escritor cearense esboça a gênese de uma nação profundamente marcada pelo vínculo colonial: morta a índia nativa e batizado Moacir, filho dela com o europeu Martim, o nome da "virgem dos lábios de mel" foi esquecido em suas terras. Eternizada em estátuas, equipamentos culturais, hotéis, ruas e epíteto até de um trecho litorâneo da Capital, Iracema é símbolo do Estado - mas, em um contexto de tamanha violência epistêmica, o que essa escolha reflete sobre a historiografia do Ceará?
Pesquisadores da trilogia indianista de José de Alencar - Iracema, O Guarani (1857) e Ubirajara (1874) - destacam a importância de uma leitura crítica dessas obras clássicas. Para Tiago Coutinho, Doutor em Memória Social pela UniRio, "o pensamento de Alencar sobre raça é extremamente eugênico: ele defende a supremacia do povo branco sobre todos os outros povos. Vale lembrar que, em 1850, é declarada a Lei da Terra no Brasil - o documento determina a destinação de terras aos indígenas reconhecidos pelo governo. Em 1863, é lançado um relatório provincial bastante controverso: ao mesmo tempo em que o texto aponta a não existência de índios no Ceará, ele mostra o conflito de terra com os índios. Em 1865, dois anos depois desse relatório, Alencar publica Iracema e a conclusão do livro mostra a protagonista morta, o filho dela já é considerado um mameluco e os índios restantes foram cristianizados. Negar a existência indígena e depois utilizá-la como símbolo do Ceará é cinismo".
Suene Honorato, professora do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC), analisa a construção do imaginário indígena por Alencar. "A ideia de brasilidade construída pelo discurso alencarino é baseada na exclusão do negro; na submissão do índio ao branco e na fixação do índio como elemento do passado. A imagem do indígena na expressão alencarina é a que acabou se consolidando: um índio idealizado, enobrecido para se tornar nosso ancestral mítico, mas desde que fizesse parte do passado brasileiro. No presente, não existiria 'índio', pois os povos indígenas teriam sido 'assimilados' à 'civilização'. Esse argumento vem sendo usado há séculos para expulsar os indígenas de seus territórios. Os direitos garantidos pela Constituição de 1988 são um marco da resistência dos povos originários, que continuam em luta para que tais direitos sejam efetivados. Há muitos modos de ser 'índio' no Brasil de hoje e todos eles precisam ser reconhecidos e respeitados", encerra a professora.