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Tudo passa sobre a terra?
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Tudo passa sobre a terra?

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No último capítulo de Iracema, Martim retorna com Moacir, o "filho da dor", para fundar a "mairi" dos cristãos; assim, "a palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem; e o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá". Poti é batizado e se torna aliado do português no combate ao "feroz tupinambá" e ao "branco tapuia". Iracema, que havia morrido de tristeza, já não é lembrada pela amiga jandaia que antes cantava seu nome. O narrador conclui: "Tudo passa sobre a terra". Essa frase não se refere apenas a Iracema; ela sepulta no passado brasileiro um modo de vida. A "verdadeira" religião se impõe, o bronze substitui o maracá, Poti se afasta de sua cultura. Iracema é figura da passagem do estado de "barbárie" à "civilização".

Embora o final de Iracema seja apenas um momento na obra de Alencar, ele é emblemático de um discurso a respeito dos povos indígenas que se tornou dominante. No século XIX já se dizia que "não havia índios no Brasil", no que, aliás, o Ceará foi pioneiro, ao extinguir em 1860 todas as aldeias indígenas para reaver os territórios garantidos a essas populações, com base na Lei de Terras de 1850. Mas havia outros discursos: Lourenço Amazonas e Couto de Magalhães, por exemplo, estavam em contato com indígenas e escreviam sobre sua presença na sociedade. Terá sido por suposta falta de "qualidade literária" que esses autores foram esquecidos? Provavelmente não.

Na obra de Alencar, Iracema e Peri são objetos, não sujeitos da história, e destinam-se à composição da identidade brasileira (da qual o negro foi excluído). No século XX, a ideia de "assimilação" ainda se fazia presente entre indigenistas e antropólogos. Esse quadro começa a ser alterado com a emergência do movimento indígena nas últimas décadas. A presença dos indígenas na política, nas universidades, na literatura, no cinema, nas artes plásticas tem nos ensinado que o Brasil é um país plurilíngue e poderia ser plurinacional, que este território tem mais de 12 mil anos de história, que há 500 anos essa é uma história de luta contra o genocídio sistemático que ainda está em curso.

No Ceará, 14 povos indígenas hoje lutam pela garantia de seus modos de vida, direito conquistado na Constituição de 1988. Filmes como Espelho Nativo e Suaçuamussará contam um pouco dessa história. Em entrevista destinada a uma investigação em curso, realizada pela antropóloga portuguesa Paula Godinho em 31 de março deste ano, Cacique Pequena disse: "vivo nesse mundo novo da modernidade, mas não deixo de ser índia e nunca vou deixar de ser".

 

Suene Honorato é professora do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC)

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