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A mansa fúria de Carrascoza
Vida & Arte

A mansa fúria de Carrascoza

|Literatura| Autor de obras como Caderno de um ausente e Aquela água toda, escritor paulista João Anzanello Carrascoza lança livros sobre família e infância
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João Anzanello Carrascoza (Cravinhos, interior de São Paulo, 1962) é um escritor e professor universitário brasileiro (Foto: Adriana Vichi/ Divulgação)
Foto: Adriana Vichi/ Divulgação João Anzanello Carrascoza (Cravinhos, interior de São Paulo, 1962) é um escritor e professor universitário brasileiro

Nos cafundós do sertão, diz-se "bonito para chover" o céu pesado d'água, toró anunciado. Quando cai, a chuva nutre a terra — o chão germina, floresce. A escrita de João Anzanello Carrascoza é como o sereno que rega os interiores: manso, mas faz brotar um furioso e inevitável verde. A palavra, feito água, toma o corpo.

Filho de Maria Helena e André, Carrascoza é o terceiro de seis filhos da família nascida em Cravinhos, interior de São Paulo. Inaugurou sua vida em 1962 e cresceu entre histórias, afeiçoou-se ao contar. Hoje, o renomado escritor e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP é autor de mais de 40 livros infantojuvenis, contos, não-ficção, romances e adaptações. Ganhador de prêmios como o Jabuti, os da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e o Guimarães Rosa, Carrascoza volta às páginas do Vida&Arte para compartilhar duas obras novas: Elegia do irmão (Companhia das Letras) e Vamos acordar o dia? Histórias de uma linha só (SM).

O POVO: Como foi o início de sua trajetória literária?

João Anzanello Carrascoza: Minha mãe é uma mulher que leu e continua lendo demais — ela sempre está com um livro na mão. Ela guardava os livros em uma estante e, ainda pequeno, eu ficava muito interessado em saber o que eram aquelas pequenas caixinhas, as lombadas. Os livros me fascinavam porque guardavam as histórias que meu pai contava pra gente antes de dormirmos. Eu acredito que já era um aficionado pelo universo da literatura por ouvi-lo contar. O primeiro livro que eu li era uma compilação de As Mil e Uma Noites, com seis ou sete anos... Quando meu pai contava as histórias para gente, eu saia na escola contando para os meus amigos e inventando outra coisa, mudava o final, ia contaminando com meu jeito de ser. Apesar de apaixonado por histórias, eu comecei a escrever poesias porque estava mais à mão. Na poesia, você está mais voltado para a descoberta do eu... Na prosa, você tem a vivência de construir personagens, você aprende que tem que ter conflito, você vai desenvolver seu estilo. Talvez tenha vindo daí esse tipo de prosa que eu faço, uma prosa lírica, tocada nas relação afetivas. Ela não está muito preocupada com as ações típicas da prosa, os acontecimentos — é a vida mais interior, na qual também as coisas estão avançando, mas têm um outro ritmo.

O POVO: Em diversas obras de sua autoria, a cidade de Cravinhos é frequentemente ambientada. Qual a influência do município nesse percurso?

Carrascoza: Saí de Cravinhos para São Paulo com 17 anos para cursar a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e me mantive aqui desde então... Coloco Cravinhos na Elegia do irmão, como coloquei na Trilogia do Adeus, não apenas como um ponto biográfico: eu sou muito grato a Cravinhos por ter aprendido a amar literatura lá, por essas histórias que meu pai contava que orbitavam naquele universo meio rural e meio urbano de uma cidade pequena. Estou sempre revisitando esse lugar que é até imaginário, pois também se constrói.

O POVO: Em Vamos acordar o dia?, você define família como "uma história costurada na outra". Como esse passeio pelo microcosmo familiar constrói a sua obra?

Carrascoza: O lugar que nasci é um lugar pequeno, então, a primeira coisa que você descobre é o outro, o que não é você. Dentro de casa, eu estou vendo um outro que é parecido comigo: a cor dos olhos, o mesmo jeito de olhar, a curva do queixo... Mas não sou eu, é o meu irmão. Há muita reverência em ver o outro, você vê que tem que se aproximar dele com respeito, numa busca de comunhão — é um mistério que a gente aprende a cultuar. Essa relação sempre com outro é o que pauta a minha literatura. Esse outro de casa é esse outro de dentro, é um outro que ainda tem muito de mim, é esse enigma de uma vida diante da minha. É uma coisa muito grande, espantosa. Essas pessoas formam as suas nascentes: você é um fluxo daquilo tudo e você vai gerar um outro fio d'água lá na frente, com quem você põe no mundo. Esse outro influxo vai pautar o curso, não sei se com margens maiores ou margens menores, mas você também vai fundar águas. Eu sinto que eu posso falar disso porque está muito profundo em mim.

O POVO: As partidas também permeiam sua lírica. Como essas ausências se manifestam em sua produção literária? Escrever é também encará-las?

Carrascoza: O lugar é igual ao Tejo para Fernando Pessoa: a gente acaba não se libertando, acaba sendo o nosso cais também porque fez o nosso passado e continua nos fazendo... Vindo de Cravinhos, veja só , eu passei a ver as pessoas saindo, viajando, se mudando. Você vai vendo tudo mudando e eu logo eu mudei também. Então você vai construindo isso, você vai alimentando esse sentimento — no momento em que ele for presente, na ausência. Você está longe das pessoas, mesmo aquelas que estão ali ao lado e você não vê na hora que quer. Muitas pessoas vão embora definitivamente, crianças morrem nos açudes, perdi meu pai quando eu tinha 13 anos… Uma coisa que você passa a ter consciência é que o mundo segue, é um milagre que está acontecendo o tempo todo. Essa ausência me faz valorizar a presença. No momento que ela existe, que ela seja plena, que ela seja sublime.

O POVO: Em Elegia do irmão, o narrador elabora a morte da irmã desde a primeira página. O irmão afirma: "Eu sempre terei minha irmã, Mara, mesmo depois que ela se for"...

Carrascoza: A ideia do livro não é demarcar a morte e sim celebrar a vida. Ele é escrito em duas partes: antes, quando ele sabe que a irmã vai morrer, como é viver sabendo que o inevitável virá? Foi um desafio: à medida que você escrever e já deixa na primeira página a morte da irmã, você tem que manter o leitor ali em sua verdade. Eu mobilizei todas as minhas dores.. Não é fácil escrever essas coisas. Eu não perdi um irmão, mas é como se tivesse perdido: quando eu estou escrevendo, eu vivo o personagem. Ele tá escrevendo, ele tá demarcando, ele tá relembrando. A minha vontade não era ficar focando nas angústias da morte porque isso vai acontecer — mas, antes de acontecer, como é viver diante de uma pessoa que você ama muito e vai perder a qualquer hora? Vê-la aos poucos se derruindo aos seus olhos? Depois que ela se vai, eu lutei muito para que a segunda parte tivesse muita força, que ele fizesse uma evocação mais profunda para viver aquela presença ainda que fragmentada, mas que você quer viver. Acho que a segunda parte é até mais poética que a primeira, ela traz essa ideia de você também falar sobre a impotência da palavra. A segunda parte é uma elaboração profunda do luto: ele vai seguir a vida para uma nova vida, uma nova vida sem ela. O livro é fragmentado e escolhi escrevê-lo desse jeito porque ele também está sendo quebrado pelo destino, "que derruba a família inteira". Trabalhando com aquela parábola do Ludwig Wittgenstein, em que ele dizia que o limite do seu mundo é o limite da sua linguagem, lembro que para esse narrador o limite da sua dor é o limite do seu mundo.

O POVO: Vamos acordar o dia? Histórias de uma linha só também é um de seus lançamentos mais recentes. Como é esse exercício de criar uma obra infantil?

Carrascoza: Na verdade, eu escrevo literatura infanto-juvenil meio que atravessando uma seca. Sabe quando você quer ser menino de novo? É o homem do lado de cá que volta para lá. Eu não fico pensando que vou escrever isso para uma criança ou para um adolescente, é tudo literatura. A história está lá, tem identidade também. O livro tem um diálogo com o leitor primeiro, aquele que está começando a ler e encontra uma história de uma linha única e fica imaginando a partir dela. Uma outra ideia é que os pais leiam juntos, é dar corda no dia como se fosse um relógio. A partir da primeira linha, o dia começa a girar igual a um brinquedo e você cria sua história.

Livro de João Anzanello Carrascoza
Livro de João Anzanello Carrascoza

Vamos acordar o dia? Histórias de uma linha só

João Anzanello Carrascoza

Ilustrações de Sandra Jávera

Editora: SM

Coleção: Tatu-Bola

Segmento: Infantil (6-7 anos)

Lançamento: 1ª edição 2018

48 páginas

Livro de João Anzanello Carrascoza
Livro de João Anzanello Carrascoza

Elegia do irmão

João Anzanello Carrascoza

Editora: Companhia das Letras

Lançamento: 2019

152 páginas

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