Num dos capítulos decisivos de Repórter, Seymour Hersh, 82 anos, descreve minuciosamente os bastidores da reportagem que sustenta a manchete do New York Times do dia 22 de dezembro de 1974, considerada por ele o artigo mais explosivo de sua carreira.
Estampada em letras garrafais naquele dia, o jornal trombeteava: "Descoberta operação imensa da CIA nos Estados Unidos contra forças pacifistas e outros dissidentes nos anos do governo Nixon".
Num longo relato, Hersh expôs detalhadamente o envolvimento da agência de inteligência norte-americana nos grampos usados contra adversários políticos do presidente Richard Nixon de 1967 a 1974.
À publicação do texto se seguiu "uma ampla revolta pública contra a espionagem no próprio país", como descreve Hersh em seu livro de memórias, lançado ano passado nos EUA e que agora chega ao Brasil pela editora Todavia. Nele o jornalista detém-se principalmente no fio que conecta o poder e a corrupção, seja no front de guerra, seja nos gabinetes das autoridades - eventualmente nas redações dos jornais.
Repórter tem duas qualidades evidentes: como os principais trabalhos de Hersh, é uma ampla e exaustiva narrativa sobre as transformações no mundo jornalístico dos últimos 60 anos, a partir das coberturas mais delicadas da imprensa norte-americana: a guerra do Vietnã, o caso Watergate, o Onze de Setembro e a "guerra ao terror", deflagrada pelo governo Bush como resposta ao ataque às Torres Gêmeas levado adiante pela Al Qaeda.
Mas o livro é também um triste lamento pela morte do que ele classifica como a "era de ouro do jornalismo", expressão que figura logo às primeiras páginas da obra e com a qual ele se refere de maneira sintética à liberdade de investigar criteriosamente um assunto antes de escrever.
Foi assim, explica o autor, que venceu o Pulitzer com a reportagem sobre o massacre de civis em My Lai, no Vietnã, em 16 de março de 1968. Ou quando relatou os abusos cometidos nas prisões de Abu Ghraib, no Iraque, onde internos foram alvo de violência sexual sob a supervisão de soldados do Exército dos Estados Unidos. Ou, ainda, ao farejar o fio que o levaria até o alto escalão do governo Nixon e da CIA, revelando os interstícios da organização.
Para Hersh, no entanto, esse tempo de ouro acabou. Agora, os jornais, cujas equipes encolhem dia a dia, têm um interesse especial na rapidez - o mesmo jornalista produz a matéria num dia para comentá-la na TV no seguinte.
"Eu não teria conseguido fazer o que fiz se tivesse que trabalhar com o jornalismo caótico e sem estrutura de hoje em dia", conclui o repórter, talvez o mais brilhante de sua geração. "Sempre pensei que era a missão de um jornal buscar a verdade e não apenas registrar a discordância".
Filho de uma típica família do meio-oeste dos EUA, Hersh entrou no jornalismo pela porta de trás. Como contínuo na redação do Chicago Tribune, ocupava-se de limpar as mesas dos chefes até que finalmente alguém o designasse para cobrir a sua primeira matéria: um incêndio. Eram os anos de 1950, e o país sofria transformações aceleradas.
Menos de 15 anos depois, Hersh envolvia-se na investigação dos papéis do Pentágono e dos grampos da Casa Branca, que resultariam na queda do presidente. Nesse meio tempo, passou pelas maiores redações americanas: além do NYT, revistas como a Life e a The New Yorker.
No curso dessa trajetória, elaborou um catecismo próprio, assentado em três pontos basilares: assuntos que incomodam os governos (normalmente sobre política e guerra), análise de documentos primários e checagem incansável dos fatos, com o cruzamento de fontes. Ao comentar sobre o método, disse: "As duas palavras mais mortais do mundo da imprensa são: 'Eu acho'".
Disso deriva o principal defeito do jornalismo atualmente, assinala Hersh. "A mídia, assim como a nação, está mais tendenciosa e estridente", avalia. Ele cita especialmente a cobertura feita do governo de Donald Trump.
Repórter por excelência, o autor é também um trabalhador persistente e dedicado - além de dono de uma prosa cristalina que conjuga como poucos o melhor do estilo jornalístico da tradição norte-americana. Pode soar pessimista em relação ao futuro dos jornais, e de fato é.
E, entretanto, Hersh continua a apostar naquilo que sempre fez por meio século: reportagem - para ele, não apenas a alma do jornalismo, mas sua verdadeira vocação. Mesmo diante de uma crise que desafia formatos e redesenha atribuições, ele assegura: "É claro que eu continuo tentando".
Repórter - Memórias
tradução de Antônio Xerxenesky
384 páginas
Editora Todavia
Preço médio: R$ 74,90