De uma herança trazida das terras europeias, mais especificamente da França do século XVIII, a quadrilha junina ganhou uma ressignificação toda especial no Brasil, sobretudo nos estados da região Nordeste, sendo atrelada aos folguedos que reverenciam a sagrada tríade - São João, Santo Antônio e São Pedro (no Maranhão, porém, ainda existem as festas dedicadas a São Marçal, no dia 30). Tendo como característica uma dança formada por casais "matutos", um padre, uma Rainha do Milho, um marcador (que comanda a brincadeira) e instrumentos característicos (sanfona, zabumba e triângulo, a priori), a quadrilha junina, aos poucos, adquiriu novos contornos, sobretudo, de ordem estética.
Das roupas típicas que privilegiavam o colorido da chita, os vestidos e demais acessórios dos grupos ornam agora pedrarias das mais variadas, veludos, rendas, bordados, flores, babados e mais babados. Balões de gás hélio, efeitos pirotécnicos, grandes alegorias e até trocas de roupa instantâneas durante a própria apresentação trazem um questionamento, sobretudo para os menos acostumados: teriam as quadrilhas se afastado do que conhecíamos, até então, como "tradicional"? O São João, hoje, chegou ao patamar de uma "carnavalização", no sentido de se equiparar aos grandes espetáculos de caráter popular?
"Não tem mais quadrilha como antigamente", frisou Joaquim Sotero. Historiador e figurinista de 2019 da quadrilha Cumpade Justino, de Maracanaú, já com 23 anos de trajetória. Joaquim - que, em 2018, assinou o figurino do casal matuto da Junina Babaçu - destrincha o aparato que existe por trás de um grupo. "Todas elas, hoje, têm uma produção por trás, com pesquisadores, equipe de marketing, coreógrafos, figurinistas, profissionais formados em/no teatro". Para ele, esse novo modelo de quadrilhas é algo natural. "Acredito na dinâmica que a cultura é. As novas formas de se comunicar, as novas tecnologias, as referências tiradas de outros movimentos culturais, como o próprio Carnaval", resume.
Presidente da Junina Babaçu, que celebra 30 anos em 2019, Tácio Monteiro afirma que a discussão entre "ser tradicional" e "ser estilizado" não vem de hoje. "Nossa quadrilha, que antes era Arraiá do Babaçu, teve um alicerce. Começou bem simples, de comunidade e, com alguns anos, passou a ser de Fortaleza, porque passou a ter integrantes também da Capital. A gente foi se adequando à realidade dos concursos, porque, na verdade, essa mudança e essa diferenciação entre quadrilha tradicional e quadrilha estilizada sempre foi colocada em pauta", afirma. E corrobora com a opinião de Joaquim: "Eu posso lhe dizer que hoje não temos mais grupos tradicionais como tínhamos nas décadas de 1980 e 1990. Eles foram se adequando e aqueles que se conservaram tradicionais deixaram de existir", sinaliza.
Também historiadora, Cícera Barbosa integra a Rede de Pesquisadores em Cultura Junina, formando o júri de quadrilha para o Ceará Junino, Sesc Circuito e União Junina. Para ela, a questão ou não da originalidade nos grupos perpassa, antes de tudo, a lógica do que seja cultura. "A cultura não é uma coisa morta. Ela está em movimento, é dinâmica e também se altera com o tempo. A gente trabalha com as mudanças e com as permanências desse ciclo junino. O que se alterou: muitas comidas entraram nesse cardápio, muitos passos de balé, tecidos que não faziam parte, ritmos além do xote, do xaxado e do baião. E foram várias alterações, inclusive, na forma de julgar", explica.
"A gente tem aí alguns destaques que acabam sendo muito celebrados, como é o caso da rainha, do marcador e dos noivos, os principais atores dessa celebração. A quadrilha é uma celebração da colheita e uma festa, que é a de casamento. É fruto do seu tempo. Algumas coisas conseguem se consolidar e outras, não. Por isso a gente trabalha com os jurados noções de patrimônio, cultura e memória, para que eles tenham noção deste elemento histórico que fala sobre a identidade, pertencimento, tradição...", finalizou Cícera.
Do artesanato aos paetês
A disputa entre tradição e inovação nas festas juninas gera um importante debate sobre transformação cultural e regionalismo. Mas, além dos babados, xotes e xaxados em pauta, o São João também movimenta a economia, a moda e o turismo do Estado — como na folia carnavalesca, os brincantes iniciam a preparação da festa com antecedência. Coreografias, enredos, canções, temas, trajes: tudo isso garante a grandiosidade do espetáculo.
O São João de Maracanaú, em sua 15ª edição, consagrou-se um dos maiores do Ceará: neste ano, os festejos do município localizado na Região Metropolitana de Fortaleza mobilizaram cerca de 1 milhão de visitantes ao longo dos 17 dias de programação. Anitta, Wesley Safadão, Léo Santana e Aldair Playboy foram as atrações principais do evento gratuito realizado entre 6 e 22 de junho. Segundo informações do secretário de Cultura e Turismo de Maracanaú, Gerson Cecchini, mais de R$3,8 milhões foram investidos no evento — R$ 1,9 milhão pela Prefeitura Municipal, R$ 1,789 milhão pela iniciativa privada e outros R$ 180 mil pelo Governo do Estado. "O São João de Maracanaú gera mais de três mil empregos temporários e os festivais de quadrilhas juninas abrem espaços para mais de 100 grupos de Maracanaú, do Nordeste e do Brasil", enumera Cecchini.
A maracanauense Cumpade Justino resgatou os festejos tradicionais com uma adaptação: "Percebendo a falta da essência do São João tradicional, a gente decidiu criar um tema originalmente junino, com os elementos como fogueira e bandeirinhas e incluindo quatro santos de junho. Assistindo à Ópera do Malandro, notei que roteiro poderia ser uma narrativa junina. Então, a nossa adaptação tornou-se a Ópera do Matuto", explica o vice-presidente da quadrilha Gleison Oliveira. Já a Paixão Nordestina, grupo criado há mais de 20 anos no bairro Vila Manuel Sátiro, enquadra-se nas equipes estilizadas. "A quadrilha tem muito brilho, muito material cenográfico, muita pompa do São João, que é o que movimenta na atualidade", explica o coordenador geral e marcador Milton Jr.
Davi dos Santos Silva, quadrilheiro há 16 anos, acumula vasta experiência em sua trajetória: o coordenador financeiro já brincou nas quadrilhas GFAB (Grupo Folclórico Asa Branca), Beija-Flor do Sertão, Flor do Mamulengo, Paixão Nordestina, Cumpade Justino e Junina Babaçu. "Essas quadrilhas maiores geram um investimento alto tanto para o brincante quanto para o próprio grupo. Por exemplo, o custo médio de um casal para dançar nessas quadrilhas é entre R$5 e R$7 mil. Quando a gente inicia os ensaios, geralmente existem taxas que englobam pagamento dos músicos e adereços — são cerca de mil reais. O São João envolve figurino, maquiagem, tecidos, pedrarias… Isso não quer dizer que uma pessoa de poder aquisitivo menor não possa dançar, mas ela vai precisar entrar em uma quadrilha menos robusta", observa.
Professora do curso Design-Moda da UFC, a pesquisadora Marta Sorelia pontua que os trajes juninos são a parte mais onerosa do espetáculo. "Os figurinos utilizados nas quadrilhas juninas evoluíram do artesanato aos paetês. Na versão original, os materiais utilizados eram reflexo da escassez própria do sertão nordestino: os vestidos simples confeccionados em chita, juntamente com os acessórios de palha e couro, contrastavam com as estampas em cores vivas. Os trajes juninos da contemporaneidade evoluíram esteticamente por meio de modelagens mais elaboradas, adornos com brilho e a presença de paetês que por vezes mais sugerem a alegoria de um traje carnavalesco do que a inspiração original. Os tecidos podem variar bastante, mas os mais recorrentes são os com brilhos acetinados, filós, tules e forro de algodão, dependendo da escolha da composição. No entanto, destaca-se que o figurino completo é composto por um conjunto maior que envolve não apenas o tecido, mas também requer aviamentos, costuras, arranjos, chapéus, bijuterias, acessórios em geral".
Sobre a renovação dos figurinos, Marta defende: "Para muitos, a evolução dos trajes juninos parece uma deturpação da inspiração original, que nada tem de rústico e de essencial do nordestino. No entanto, eu prefiro me apoiar no posicionamento de que os figurinos podem evoluir, mantendo alguns elementos da inspiração originária, ao mesmo tempo podem incorporar elementos de outras épocas, lugares e referências estéticas. Desta forma, a evolução do traje junino parece ser muito mais uma incorporação estética de diversas referências do que uma negação acerca da inspiração original. Acredito que o resultado estético que hoje se apresenta no figurino junino é a evolução do processo criativo dos agentes envolvidos neste espetáculo, num esforço de superação contínua, onde se percebe mais complexidade, e variedade de estilos".