Doutor pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos EUA; engenheiro pela École Nationale Supérieure des Télécommunications, em Paris; fundador do departamento de Matemática da PUC-Rio — e filho do artista plástico Candido Portinari. João Candido Portirari não gosta de ser chamado de "herdeiro": antes dos epítetos, é um determinado defensor cultural. Há 40 anos, cartografa as obras do pai e dissemina o trabalho dele "para todas as idades e todos os gêneros".
O POVO: Somente aos 40 anos o senhor compreendeu a dimensão nacional e internacional da obra de seu pai. Como ocorre, desde então, esse processo mapear essas mais de cinco mil obras?
João Candido Portinari: Quando eu era bem jovem, não tinha muita noção de quem era este homem que morava na minha casa, quem era este pai. Era só um pai, como tantos outros… Eu até me lembro que, uma vez, perguntei para minha mãe: "Ô, mãe, o pai não trabalha? Passa o dia pintando" (risos). Esse foi um processo longo e muito complicado na minha adolescência, porque ele tinha uma projeção enorme no Brasil naquela época e eu ia para outros lugares com outros adolescentes e as pessoas me apresentavam como "o filho do Portinari". Aos 18 anos, fui estudar Engenharia na França e ele faleceu enquanto eu estava lá, eu tinha 23 anos… A gente sempre teve uma relação muito carinhosa e próxima, trocava muitas cartas… Quando fiz 40 anos, decidi que tinha que fazer alguma coisa pelo legado e pela memória de meu pai. Nós temos que nos reportar ao contexto do Brasil em 1979: acabava a ditadura militar e surgia no País uma ânsia por buscar sua identidade. Começaram a explodir pelo Brasil todo projetos culturais e é no bojo desse movimento que surge o Projeto Portinari — um reencontro com o pintor, um reencontro com o Brasil. Fiz 80 anos agora em janeiro, então significa que eu passei a metade da minha vida nesse Projeto Portinari.
O POVO: O Projeto Portinari não possui acervo próprio. Como funciona?
João: Nós nunca pretendemos ter um acervo próprio. O Projeto Portinari sempre foi um projeto de pesquisa universitária. Na verdade, contamos três grandes momentos em nosso projeto: o que a gente chamou de levantamento e catalogação; a pesquisa; e o que nós chamávamos no início de difusão, mas daí achamos que não era bem isso, era disponibilização — não queríamos divulgar Portinari, ele não precisa de divulgação, ele está aí para a eternidade… Por isso, a gente chamou de disponibilização; colocar de todas as formas possíveis e ao alcance do maior público possível não só a obra histórica dele, mas a grande mensagem humanista e ética que ele nos deixou através de suas conferências, de seus escritos, de seus poemas.
O POVO: Antônio Callado, biógrafo de Portinari, afirma que a diversidade de obras do pintor é tamanha que poderia se dizer que foram feitas por 100 artistas diferentes...
João: Ele tinha uma curiosidade infinita de formas de expressão. Uma vez, perguntaram: "E a técnica?", e ele respondeu: "A técnica é um meio muito importante, de fato". "E qual é o tema?". "O tema é o homem, é o ser humano".
O POVO: A humanidade, então, é fio condutor da obra do Portinari?
João: Sim, é o fio condutor. Se perguntarem uma única palavra para definir Portinari, a palavra é essa: a profunda compaixão com o ser humano. Compaixão não no sentido de pena ou misericórdia; compaixão no sentido de sentir junto, sentir com. Essa é a característica da obra dele — mesmo que mudem as técnicas e as formas de expressão... Ele não estava satisfeito nunca com a obra dele, tinha uma autocrítica tremenda. A minha mãe tinha que sempre arrancar os quadros das mãos dele, senão ele não terminava nunca! (risos). A grande unidade que permeia a obra de Portinari não está na expressão pictórica, na forma de pintar, mas sim no tema. O tema é sempre o mesmo — a denúncia da injustiça social, a não violência, a fraternidade, o espírito comunitário, o respeito ao sagrado.
O POVO: A obra sagrada de Portinari é ampla, mas o pintor ganhou o estigma de ateu...
João: Um grande equívoco que existe é que, por ele ser comunista, ele tinha que ser ateu. Mas as pessoas esquecem de sua origem italiana — dos pais, das irmãs e dos irmãos que eram todos profundamente católicos. Em dado momento, Portinari declarou: "Eu sou um homem que tem saudade de Deus". Olha que coisa bonita! E a obra sacra dele, segundo muitos críticos e inclusive o Israel Pedrosa, é uma das obras sacras mais importantes do século XX em termos universais. Ele fez inúmeras vezes o Cristo, os santos todos, tem uma ampla obra sacra que é menos conhecida porque ele é mais referenciado pela relação com o Nordeste.
O POVO: Portinari conheceu o Nordeste?
João: Não, é uma coisa curiosa. As pessoas pensam que ele conheceu o Nordeste para retratar aquilo com tanta pungência. Mas aconteceu o contrário: o Nordeste veio a ele, porque ele nasceu em um povoadozinho que era itinerário de retirantes que desciam para o sul a procura de melhores condições de vida. Ele viu desde criança aquelas famílias morrendo pela estrada com os filhos no colo, todo aquele drama. Portinari retratou os retirantes até seu último suspiro.
O POVO: Portinari disse que "não há arte neutra"...
João: Sim. Ele disse também: "O homem merece uma existência mais digna. Minha arma é a pintura". Mas era uma arma da paz. Hoje em dia você tem obras de arte que propõem linhas, cores, formas, mas ele não — ele tinha um compromisso tremendo com esses valores, com a ética.