Depois de quase dois anos, a terceira temporada da Strangers Things estreou ontem na Netflix. E tem tudo para agradar aos fãs das duas temporadas anteriores, que a tornaram um fenômeno. Mas não só. São grandes as possibilidades de a série aumentar o seu rol de admiradores. A razão é simples. Esta nova temporada mantém o que de melhor havia em suas antecessoras, ao mesmo tempo em que se sofistica tanto em linguagem audiovisual quanto em narrativa.
A pequena cidade de Hawkins segue correndo perigos sobrenaturais. Só que agora estamos em 1985, e o grupo de crianças que protagonizou as sessões anteriores é formado por adolescentes, com suas revoluções hormonais e as devidas consequências. O que, por si, já abre novas possibilidades de abordagens dramatúrgicas.
Para os fãs aguerridos, a boa notícia é que a série mantém seu DNA. Estão lá o clima de suspense, as sequências planejadas para fazer o espectador pular da cadeira, o fim de cada episódio com um gancho dramático forte puxando para o seguinte, enfim o revival nostálgico dos anos 1980.
Da mesma maneira que é uma alegria reencontrar os personagens protagonistas da série e perceber neles a ação do tempo passado em nossa ausência. Aos que não suportam a menção de spoilers, ainda que protocolares, um aviso: é melhor parar a leitura por aqui (ou pular para o 8º parágrafo).
A saber, Mike (Finn Wolfhard) e Eleven (Millie Bobby Brown) estão namorando firme. Tão firme que o chamego dos dois incomoda o xerife Hopper (David Harbour). Aliás, é muito curioso observar o "embarangamento", chamemos assim, de Hopper, como contraponto em uma época em que a obsessão pela forma física começa a despontar, mas isso é outro assunto.
Também seguem "in love" Lucas (Caleb McLaughlin) e Max (Sadie Sink). E até Dustin (Gaten Matarazzo) parece que descolou com um par, Suzie. Apenas Will (Noah Schnapp) continua avulso, e às voltas com o drama de ser trocado por garotas pelos seus melhores amigos.
No entanto, mais uma vez, a normalidade da cidadezinha fictícia é quebrada pelo retorno do Destruidor de Mentes. E aí, a coisa muda de figura.
Um dos principais diferenciais desta temporada é que as intenções dos irmãos Duffer, criadores da série, transbordam o terror pelo terror e propõem discussões outras muito interessantes, estabelecendo um canal de diálogo eficaz com a realidade da segunda metade destes anos 2010.
E antes que o leitor se assuste, um esclarecimento. Em nada esta intenção metafórica compromete o andamento da trama principal, de suspense e ficção científica que caracterizam Stranger Things. Mas há uma segunda camada narrativa, correndo em paralelo, que só lhe enriquece.
Impossível não observar a abordagem de temas como empoderamento feminino e sororidade, por exemplo, além da citação a intolerância religiosa, nas entrelinhas dos primeiros episódios. Mas talvez a mais profunda discussão que a série coloca seja a da chegada do shopping center a Hawkins, com a consequente falência do comércio no centro da cidade.
Quer metáfora mais clara para um tema caríssimo a este século 21? Quando a própria Netflix "quebra" o mercado de videolocadoras que vigorou por anos, ameaça verdadeiramente as TVs a cabo e até mesmo estabelece uma relação complicadíssima com o cinema, até agora entendido como tal.
Sem falar na crise dos veículos tradicionais de comunicação com a popularização do online, aplicativos e que tais. E não deixa de ser irônico, o que só reforça a intencionalidade do recurso dramático, que hoje, 24 anos depois, sejam os shopping centers que se vejam ameaçados pelo e-commerce.
Mas não é só na narrativa subliminar que Stranger Things se sofistica. A direção e a montagem dos episódios iniciais (este escriba ainda não terminou sua maratona) são primorosas. Tanto com planos muito elaborados quanto com uma edição que por vezes surpreende pelas soluções obtidas.
Ainda que as referências a clássicos cinematográficos nos anos 1980 sigam firme e forte - e não serei eu quem lhe tirará o prazer de identificá-las, caro leitor -, há outras referências estéticas, também sofisticadas.
Quando imaginar que os primeiros episódios seriam marcados por uma citação de O Flautista de Hamelin, dos Irmãos Grimm? Ou que O Segredo da Borboleta, de Toni Tucci, best seller que se tornou uma verdadeira febre da época, daria mote a uma sequência importantíssima na trama? Sim, são aspectos muito sutis, mas que fazem toda a diferença e garantem uma identificação ainda mais plena dos que viveram a época retratada.
Verossimilhança essa reforçada pela direção de arte e figurino impecáveis. Sensacional poder assistir à explosão de cores dos 80 em pleno verão, em contraponto aos invernos das temporadas anteriores. Uma grande sacada! Assim como a trilha sonora. Por falar nisso, convenhamos!, ter Material Girl, clássico de Madonna nos primórdios de sua carreira, como tema musical de garotas empolgadas fazendo compras em um shopping center é quase desonesto com quem tem mais de 40 anos!