O primeiro livro de Daniel Munduruku nasceu apenas aos 32 anos — mas o conhecimento ancestral do escritor e professor brasileiro nascido em 1964 matura há gerações. Pertence ao povo Munduruku, localizado entre Pará, Amazonas e Mato Grosso, Daniel é o autor indígena mais publicado no País: são 52 livros para crianças, jovens e educadores.
Daniel Munduruku possui um vasto currículo acadêmico: é graduado em Filosofia, tem licenciatura em História e Psicologia, é Doutor em Educação pela USP e preside o Instituto UKA - Casa dos Saberes Ancestrais. Já recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, como o Prêmio Jabuti e Prêmio da Academia Brasileira de Letras. Mas, como reconhecido filho da terra, mantém olhos e coração abertos para os ensinamentos orais de seu povo. Convidado da XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, realizada entre 16 e 25 de agosto de 2019 em Fortaleza, o escritor compartilhou suas vivências e processos literários em entrevista ao Vida&Arte.
O POVO: Como sua trajetória literária se iniciou?
Daniel Munduruku: Até os meus nove anos tive como principal ensinamento aquilo que a cultura Munduruku me oferecia. Quando tive que ir para a escola, em função de uma política do Governo no começo dos anos 1960, sofri uma série de preconceitos e naturalmente não gostava muito da escola, não tinha essa paixão pelos estudos e muito menos pela leitura. A leitura que eu tinha era uma leitura da natureza e a escola me ofereceu a leitura dos livros... Só que eu pegar o gosto por essa leitura foi bem difícil; complicado como é pra toda criança, e especialmente para uma criança oriunda de uma cultura de tradição oral. Só depois do meu Ensino Médio, já vivendo em Belém, é que eu fui criando um gosto pela literatura e procurando fazer uma ponte entre a cultura oral e a cultura escrita que eu estava aprendendo. Eu só vim gostar de ler mesmo quando estava fazendo a minha primeira faculdade, uma graduação em Filosofia, e por conta disso acabei me tornando professor. Foi justamente como professor que eu me encontrei como contador de histórias e a contação acabou fazendo chegar na literatura. Aliei a literatura escrita com a minha oralidade e a partir daí surgiu o escritor. Eu percebi que poderia ter um instrumento a mais para me comunicar com a sociedade brasileira e gerar uma consciência do Brasil que passa também pela presença e existência dos povos indígenas.
OP: Na sua obra, é reiterada a importância de repensar a relação com as populações indígenas. Qual é a relação simbólica do Brasil com o termo "índio"?
Munduruku: Eu tenho batido sempre na tecla que não existem índios no Brasil. Eu não sou índio. A palavra "índio" é inventada inclusive para desqualificar toda a nossa diversidade cultural. O Brasil é um país que tem mais de 300 povos indígenas em seu território, no entanto a gente faz uma espécie de sincretismo dessas culturas todas e acaba reduzindo todas as experiências de humanidade dentro de uma palavra que é vazia, apaga toda a pluralidade e esconde a riqueza de cada um desses povos. A palavra "índio" acaba classificando esses povos — justamente por terem uma visão diferente dessa sociedade de consumo — como povos que impedem o progresso e desenvolvimento do Brasil. Existe um discurso de apagamento desses povos para justificar a exploração, o extermínio, a invasão seus territórios, a não demarcação de terra. Enquanto o Brasil não apagar essa palavra do seu modo de tratar esses povos, vai continuar sendo injusto com uma presença tão importante que existe há mais de 500 anos e defende o patrimônio que é de todo brasileiro. Todos os brasileiros, sem exceção, trazem no seu DNA a marca de algum povo indígena. Só que o brasileiro não gosta disso: quando ele olha para trás, enxerga negros e indígenas. Mas o discurso oficial coloca na cabeça do brasileiro que ele não deve gostar nem negros, nem de indígenas — desse modo, ele acaba desconsiderando a própria origem. O Brasil só vai efetivamente achar seus caminhos no momento em que se reconciliar com seu passado e no passado brasileiro tem indígenas.
OP: Qual é o papel da literatura nesse sentido? Por que escrever para crianças?
Munduruku: Acredito que as crianças, tendo uma visão mais apropriada das populações indígenas, possam crescer com uma consciência muito mais clara do seu pertencimento a essa ancestralidade brasileira, crescer com respeito. Quem sabe, quando o futuro se fizer presente, elas tenham uma nova forma de abordar as políticas para os povos indígenas. A literatura, nesse sentido, tem um papel fundamental na construção dessa identidade que nasce também pela fantasia. O jeito de olhar as nossas populações a partir daquilo que é fantástico, daquilo que é lúdico e passa pela imaginação das crianças, cria o nosso pertencimento ao mundo. De uma maneira geral, o pertencimento passa pela nossa possibilidade de recriar o mundo em que a gente vive — quando a fantasia nos é proporcionada, ela nos torna mais humanos. Esse é o papel da literatura ao meu ver: nos tornar mais humanos. Hoje, as pessoas querem que os indígenas se tornem outros. A gente está colonizando o pensamento, repetindo a lógica da colonização; a gente tem que ir adiante e não ficar preso a esse tipo de olhar. É para isso que eu escrevo: é para lembrar às pessoas de onde elas vêm. Eu escrevo para me manter vivo, eu escrevo para que as pessoas não esqueçam a origem delas. É isso que a literatura indígena traz para a sociedade.
OP: Como se desenha o cenário da literatura indígena no Brasil?
Munduruku: Hoje existe até um movimento da literatura indígena: nós somos algo em torno de 40 escritores. Parece pouco e é, mas também é muito se a gente imaginar que isso está acontecendo nos últimos 20 anos. Esses autores têm introduzido uma literatura muito rica, esclarecedora e comprometida com a sociedade. Esse coletivo de escritores são muito importantes para retomada dessa identidade brasileira — mesmo fora da literatura, os povos indígenas têm sido a consciência do Brasil quando o País esquece que nós não somos Europa. Os indígenas estão lá para dizer que essa natureza é nossa, esse lugar é nosso, essa floresta é nossa. Os povos indígenas têm sido a consciência do Brasil e, infelizmente, a história sempre quis apagar essa consciência justamente porque ela foi escrita por aqueles que se consideram vencedores — portanto, todos os brasileiros são perdedores. Espero que, um dia, o Brasil reconheça isso e ofereça para os indígenas o verdadeiro papel que eles têm, o papel de protagonizar a nossa identidade nacional.
OP: Como o senhor encara a relação do atual Governo com os povos indígenas?
Munduruku: Estamos vivendo uma situação muito difícil. Ao extinguir o Ministério da Cultura, o Governo criou um precedente muito ruim para o Brasil porque é como se o País não tivesse mais necessidade da arte — e agora, mais do que nunca, é a arte que vai ser o principal antagonista do Governo que arranca tudo, persegue os realizadores. Os artistas têm que ser criativos para fazer frente a essa loucura... Posso dizer que o movimento indígena está muito atento ao que está acontecendo — a demarcação de terras passa pelo Governo, não tem outro jeito. Os indígenas não são capitalistas, não são rentistas, são sociedades que dependem muito do apoio de todos e dependem da ação efetiva governamental. A gente tem que lembrar ao Governo que cabe a ele demarcar as nossas terras e reconhecer o que nós temos como patrimônio; cabe ao Governo dar a possibilidade para que as nossas culturas possam ser multiplicados. Estamos vendo que o atual Governo está desfazendo direitos a cabe a nós criar uma reação. O movimento indígena está reagindo e está procurando fazer com que o Governo não seja além daquilo que ele é: um executivo da Constituição, que deve segui-la e não destruí-la.
XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará
Quando: 16 a 25 de agosto de 2019, de 10h às 22h
Onde: Centro de Eventos do Ceará.
Gratuito