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Cavalgada Selvagem investiga potências e dissidências de corpos
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Cavalgada Selvagem investiga potências e dissidências de corpos

|V&A Viu| Obra cênica Cavalgada Selvagem, de Diogo Braga, Natália Coehl e Thales Luz, investiga potências e dissidências de corpos a partir da mitologia da bruxa antiga
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Diogo Braga, Natália Coehl e Thales Luz.  (Foto: Mateus Falcão/ Divulgação)
Foto: Mateus Falcão/ Divulgação Diogo Braga, Natália Coehl e Thales Luz.

"E disse Deus: Haja luz; e houve luz". Em Gênesis, primeiro livro da Bíblia, o mito da criação do mundo identifica a luz como princípio organizativo da vida — e, se nos textos sagrados cristãos "não há nada oculto que não venha a ser revelado", o encontro luminoso entre corpos desvelados é dócil, sociável. Mas o que pode o corpo na ausência da luz? Quais os desejos desobedientes marginalizados nas trevas? Como sobrevivem aqueles que, como bruxas na Idade Média, questionam o que o conhecimento ocidental estabeleceu como norma? Com a proposta de criar um corpo no escuro e apresentá-lo à luz, a obra cênica Cavalgada Selvagem apresenta amanhã, a partir das 19 horas no Porto Dragão, uma investigação sobre potências e dissidências em estado primitivo.

A vivência performática e dançada é realizada pelos artistas Diogo Braga, Natália Coehl e Thales Luz. Fruto de uma pesquisa de sete meses no Laboratório de Dança do Porto Iracema de 2018 sob tutoria do coreógrafo Marcelo Evelin, Cavalgada Selvagem é uma provocação aos sentidos. Logo na entrada, o público é avisado: "Este espetáculo contém escuridão. Não há sinalização de saída de emergência. Cuidado onde pisa, cuidado onde encosta. Os pertences, como bolsas e celulares, deverão ser deixados na sala indicada. Na entrada do espaço cênico terá um local para deixar os sapatos. Você pode ficar onde e como quiser no momento da experiência". Começa, assim, uma viagem ao primeiro estado do ser.

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Acomodados no palco, os espectadores também compõem a obra cênica e, sob esses olhares atentos e curiosos, Diogo, Natália e Thales despem-se. Encerrados em si mesmos, os atores iniciam uma série de movimentos ritualísticos — sedutores, enlouquecidos, dominadores, um transe singular. A coesão entre os performers é palpável no encontro animalesco entre esses corpos: mãos, pés, cabelos, genitais, suores; tudo se confunde em uma dança não coreografada, guiada tão somente pelo atrito. Fundidos no chão em uma massa amorfa, os artistas renascem em um corpo-cavalo; "bruxas enfurecidas sobrevoando a noite" em uma orgia sabática. E fez-se escuridão.

"O nosso intuito foi criar um trabalho de dança no qual pudéssemos pesquisar corpo a partir do Sabá das Bruxas. A caça às bruxas representa a morte do corpo, do instinto, da sensibilidade onírica. Neste sentido, percebemos que deveríamos recuperar os sentidos, pesquisar a animalidade do nosso corpo e a escuridão do nosso inconsciente. Resolvemos fazer derivas em silêncio, pelo espaço urbano de noite. Percebemos aí que nosso corpo ficava mais atento, pois o silêncio da noite nos fazia perceber detalhes de som, que a sonoridade caótica do dia tira a percepção", explica Natália Coehl. No escuro, os olhos são traiçoeiros — e os outros sentidos se aguçam na tentativa de compreensão. "A escuridão é tudo o que a gente não quer, pois a luz é muito confortável, ela já está dada, só precisamos reproduzir o que ela diz. A escuridão se encontra com o abismo, o nosso vazio. Para nós esse encontro com a escuridão é uma possibilidade de criação de novas materialidades. O jogo é claro, o que conseguimos mostrar na luz, o que está escondido na escuridão?"

No breu, só os sons confidenciam o encontro: sussurros, suspiros, risadas, baques no chão. Palavras, afinal, são até desnecessárias. "Por meio dessas vivências de entrada na escuridão e suspensão do corpo em êxtase, reconhecemos que o trabalho em criação se dá exatamente como um ritual que permite aos corpos presentes voar escuridão a dentro como um processo de autoenfrentamento, autoconhecimento e reinvenção de si e do mundo ao redor. Sóbrios, recebemos as pessoas que se interessam em experienciar a Cavalgada Selvagem, guiamos essas pessoas sem suas ferramentas que as conectem ao mundo cotidiano produtivista, ficamos nus nos segundos iniciais da dança sem nenhum aviso prévio como uma forma seca e direta de assumir a nossa natureza 'selvagem', dançamos freneticamente numa busca exaustiva de saída da sobriedade da lógica castradora, nos lançamos na escuridão permissiva para criarmos corpos livres", continua Thales Luz.

Lugar fértil da criatividade, experimentar a escuridão é talvez o ensejo do espetáculo. "Existe um tempo necessário para que esses corpos possam 'expurgar' toda essa necessidade de preenchimento, mas uma hora esvazia — o que buscamos é oferecer um meio para que isso aconteça. Vemos o trabalho se completar justamente quando procuramos habitar essa esfera de sentido que afasta o público apenas de um formato de espectador passivo. Cavalgada Selvagem é um convite a se dançar com esses 'monstros'. Nenhum caminho é dado onde existem inúmeros caminhos para a transformação. Existe a possibilidade tanto do escuro se fazer luz quanto da luz se fazer escuro", encerra Diogo Braga.

Cavalgada Selvagem

Quando: amanhã, 26, às 19h

Onde: Porto Dragão (rua Dragão do Mar, 2, Praia de Iracema)

Quanto: R$20 (inteira)/ R$10 (meia)

 

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