Era fim dos anos 1980 quando Patrícia Palumbo estagiava na Rádio Cultura AM e acompanhou uma repórter numa entrevista com Cazuza. O combinado era que a aspirante a jornalista ficaria calada, apenas observando como funciona uma coletiva de imprensa. Mas o bichinho do jornalismo foi mais forte e em certo momento ela levantou a mão e perguntou se o roqueiro tinha ou não influências de Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran e outros dessa lavra. Antes que fosse repreendida, ganhou a simpatia e a atenção do ex-Barão Vermelho.
Nascia ali uma das jornalistas mais importantes da cena musical brasileira. No rádio, na TV, na web ou em livros e revistas, a paulista de São Sebastião acumula 35 anos de carreira. Entre seus trabalhos mais reconhecidos está o programa de rádio Vozes do Brasil, que rendeu também dois livros com longas entrevistas com nomes como Luiz Melodia, Itamar Assumpção, Rita Lee e Gal Costa. Esse trabalho foi relançado em edição ampliada pelo selo Sesc, incluindo depoimentos inéditos de Marina Lima, Elza Soares, Criolo e outros. São 33 conversas que passam por influências, vivências, inspirações e intimidades. Por email, Patrícia contou sobre sua relação com algumas das mais célebres vozes nacionais, além das transformações do mercado da música nas últimas décadas. Confiram.
O POVO - A nova edição do Vozes do Brasil reúne os dois primeiros livros e atualiza com novas entrevistas. Que Brasil se desenha a partir dessas conversas?
Patrícia Palumbo - O Brasil do qual nos orgulhamos. Diverso, plural e criativo. São 20 anos de trabalho meu e muitos mais de todos esses 33 entrevistados. Elza Soares muito antes da bossa nova; Gal Costa e Tom Zé no Tropicalismo; (Jards) Macalé e sua arte tão peculiar e transformadora; Naná Vasconcelos e a base rítmica negra da música brasileira; Rita Lee atravessando décadas de sucesso... Enfim, é o País que eu acredito ser capaz de nos levar adiante. A música e a arte são essenciais para o ser humano, esse ser pensante, sensível, que precisa da transcendência para ser melhor, mais digno e correto.
O POVO - Em muitas entrevistas, você contou sua história com o Cazuza. Quais foram as lições mais importantes que você teve para trabalhar com jornalismo e música?
Patrícia - Essa entrevista com Cazuza foi definidora pra mim. Foi o momento em que percebi que poderia confirmar com eles, os artistas que tanto ouço e admiro, aquilo que apenas supunha ao entrar em contato com sua arte. Quais as camadas de informação que o tempo traz. Minha principal lição como jornalista ainda em formação, estudante, foi de Marcos Faerman, um gaúcho intenso, um poeta no seu ofício de repórter. Ele disse: "se você, quando escreve sobre o lixo não faz com que seu leitor sinta o cheiro fétido, você não está escrevendo bem".
O POVO - Como são selecionados seus convidados para as entrevistas e como é sua preparação para elas?
Patrícia - Minha preparação é cotidiana. Leio e ouço muito. O jornalista deve ser um curioso e essa sede de conhecimento te leva a uma formação mais aberta, mais ampla e é disso que me sirvo pra entrevistar. Fundamental também, e claro, conhecer a obra do entrevistado, mas isso não é o suficiente para uma boa conversa. E tenho pra mim, desde muito cedo, que o jornalista é um comunicador, está a serviço tanto do artista quando do seu leitor ou ouvinte. Faço apenas a ponte. A seleção é intuitiva, afetiva e também circunstancial. São tantos talentos nesse Brasil que eu não tenho muito trabalho pra fazer o recorte.
O POVO - Existe de parte do público uma curiosidade sobre a vida particular dos artistas. Suas posições políticas, amores, segredos e excessos. Até que ponto você considera esses temas importantes numa entrevista?
Patrícia - Quando é relevante, ele mesmo revela. Não acho que caiba a mim, numa entrevista, entrar em assuntos que não são da vontade do meu entrevistado. Como disse, estou a serviço. Não busco manchetes sensacionais, busco fazer retratos sinceros, profundos e respeitosos. A vida pessoal, os segredos, as escolhas, estão todas impressas na canção, basta ouvir atentamente.
O POVO - Antes de chegar a essa entrevista com o Cazuza, como o jornalismo entrou na sua vida?
Patrícia - Vim para São Paulo para estudar História na USP, voltar correndo pra praia e ser professora. Entrei na Pontifícia Universidade Católica (Puc), no Jornalismo, ao mesmo tempo e acabei me apaixonando por esse mundo. Encontrei uma forma de expressão que veio ao encontro do meu jeito de ser, de ser conversadora por assim dizer.
O POVO - E a música, por onde você começou a se interessar por música?
Patrícia - Música desde menina. Aprendi inglês ouvindo Beatles e Rolling Stones, lendo as letras, as fichas técnicas. Fazia muitas fitas cassete pra mim e pros amigos com seleções malucas pra andar de bicicleta, correr na praia, curtir na rede. Amo a música negra e conheci, Aretha Franklin com 12 anos e talvez ela tenha sido minha primeira paixão musical.
O POVO - Seu primeiro livro Vozes do Brasil é de 2002, época em que as gravadoras ainda tinham peso, que a pirataria já era real e o streaming não existia. De que formas essas mudanças no consumo de música impacta no que está sendo produzido no Brasil?
Patrícia - O impacto é enorme. Gerações se adaptando, outras nascendo nesse tempo, outras sem saber o que fazer. Houve uma mudança boa que foi o acesso aos meios de produção, fazer um disco ficou mais simples e em alguns casos mais barato. Mas a mídia mudou também, a distribuição, os canais de veiculação e isso tudo ainda está na mão de uma indústria que não se preocupa com a cultura do País. O mercado de concessões de rádio, que é ilegal, faz um mal tremendo. E o jabá, ainda que enfraquecido, continua.
O POVO - Num cenário em que o consumo de música tornou-se individualizado, cada um com seus fones de ouvido, qual o papel e quais os desafios de quem faz rádio?
Patrícia - Precisamos nos reinventar sempre. Sigo oferecendo diversidade musical. Mas o que eu gostaria mesmo de ver é utópico: uma grande transformação no meio. Radical. Sem compra e venda de concessões, com valorização dos profissionais de rádio, investimento nesse veículo tão importante pra formação cultural de um País.
O POVO - Você acumulou larga experiência no rádio tradicional e há poucos anos montou a própria rádio web. Como você compara esses dois ambientes?
Patrícia - A rádio web é livre e funciona como as ondas curtas de antigamente. Chegamos no mundo todo. Eu adoro o rádio do carro, o ao vivo, a rádio AM, eu amo ouvir rádio e meu programa Vozes do Brasil está em 11 emissoras pelo País, mas não sou muito otimista. Faço parcerias e me interesso muito por rádios públicas e universitárias onde ainda consigo ouvir o que é o Brasil de verdade. Ainda não temos o hábito da rádio digital, não temos receptores digitais nem em casa e nem nos carros. Isso na Europa é uma realidade há mais de 10 anos. Haverá esse momento e é aqui que acredito que possa haver uma renovação. Emissoras segmentadas, criativas, artísticas, e você escolhe o que quer ouvir. Imagine se fosse possível no dial de casa você escolher entre jazz, erudito, forró, samba, choro, funk... Um cenário de sonho.
O POVO - Revistas de grande circulação com foco em música, como a Rolling Stone, Showbizz e Zero, não existem mais. Que relevância tem a crítica musical hoje e qual o seu espaço?
Patrícia - A crítica está quase sumindo. Temos articulistas, colunistas, gente que gosta de música e escreve. Aquele crítico que todo mundo seguia pra saber o que ouvir ou o que comprar é raro hoje em dia. Acho que curadores estão fazendo esse papel. Deixa eu ver o que fulano está tocando pra ver se eu gosto e baixo aqui...
O POVO - Quais foram os últimos artistas que te chamaram atenção?
Patrícia - São tantos... O (disco) mais recente de Thiago Pethit, Mal dos Trópicos, é uma maravilha. Josyara tem um violão incrível, uma personalidade marcante. Luedji Luna e sua africanidade universal...
O POVO - A Marina Lima dá uma definição para o que é música: "música é o mar, as embarcações são as letras". Qual a sua definição para música?
Patrícia - Música é minha melhor companhia. Me transforma o dia, faz moldura pra vida.
O POVO - São Paulo é um termômetro cultural muito forte para o País, uma vez que recebe artistas do Brasil inteiro. Como São Paulo se relaciona com essa pluralidade de linguagens?
Patrícia - São Paulo sempre foi um grande polo, sempre atraiu gente do Brasil todo. Criei para a TV Cultura de São Paulo o programa Escala que tem a cidade como personagem enquanto promove encontros com artistas que aqui se estabeleceram e cresceram. A dupla AnaVitoria, que é do Tocantis, e Patrícia Bastos, que é do Amapá; Lira que é de Pernambuco e Arthur Nogueira do Pará. São 13 episódios e canções feitas em dupla. Conheço muita gente que vem pra cá pra fazer música, para encontrar sua turma, parceiros. É uma cidade acolhedora para as artes, o público é imenso e é curioso. E é uma cidade plural em sua essência.
O POVO - Pra onde caminha a música do Brasil?
Patrícia - A música anda bem sempre. Somos um povo musical. Encontramos talentos espalhados por aí a toda hora. E a música é, das expressões artísticas, talvez a mais acessível, a que chega mais longe e mais fundo facilmente. Eu só queria que essa diversidade tivesse mais espaço, que o País pudesse conhecer a sua personalidade artística diversa, colorida, tão grande e tão linda. Música só faz bem, não há o que temer.
Vozes do Brasil (ed. revista e ampliada)
De Patrícia Palumbo
Edições Sesc São Paulo
568 páginas
Quanto: R$ 95