Logo O POVO+
Oi Carolina,
Vida & Arte

Oi Carolina,

Edição Impressa
Tipo Notícia Por

Acho muito bonita a sua proposta de nos debruçarmos sobre alguma coisa que se mexe, de conversarmos a partir de um único poema, que ainda nem foi oficialmente publicado num livro, apesar de já circular por aí, pela internet e por outros lugares.

Eu estava em Atenas, quando o Ricardo Domeneck (poeta e editor da revista Modo de Usar & Co.) me ligou, me convidando pra participar de um ato, um pequeno ritual, como ele chamou, em homenagem a Dora Lara Barcelos em Berlim, junto com outros poetas. Eu ainda não conhecia a Dora e foi um pouco por esse chamado dele que parti em busca da Maria Auxiliadora Lara Barcelos e que o meu poema nasceu, como uma forma de responder a esse chamado: in memoriam de Dora Lara Barcelos.

O ato ritualístico aconteceu em Berlim, no dia 1º de junho de 2016, no 40° aniversário de morte da Dora, que tirou sua vida em 1976, pulando na estação de metrô Charlottenburg. Éramos poucos ali, nos entornos da estação, onde lemos poemas e colamos uma placa de papel simbólica, para assinalar aos passantes a presença dela naquele lugar: Dora Lara Barcelos, presente! E todxs nós sabemos, uma homenagem é sempre uma evocação, um gesto que reivindica e presentifica a memória de alguém, reinscreve essa memória no tempo do agora, e o presente sempre tem uma certa urgência.

Antes do ato, eu comecei a pesquisar na internet sobre a Dora e eu tive vontade de escrever uma carta para a embaixada brasileira e para instituições alemãs (sem saber exatamente a quais instituições eu deveria me endereçar), solicitando uma placa de verdade em memória de Dora Lara Barcelos, só que meu alemão é muito precário e eu não daria conta de formalizar o meu pedido/desejo nessa língua. E também acho que nem em português, porque não tenho nenhum hábito de escrever textos mais formais/oficiais.

Foi aí que nasceu a ideia do poema: porque, quando eu comecei a pesquisar formas para pensar essa solicitação, como eu poderia solicitar uma placa de verdade, na medida em que eu ia pesquisando, eu comecei a entender que a carta que eu tinha pensado em escrever era a própria pesquisa que eu já estava fazendo, que a carta era o resultado da pesquisa, o histórico da pesquisa, o histórico registrado automaticamente pelo meu computador. Assim, o histórico virou poema e o poema funcionaria como uma carta, sem ter a forma clássica de uma carta.

Gosto de quando você menciona a palavra performance para falar desse tipo de poema que opera na internet, tanto na sua origem (na sua criação) quanto em um dos seus destinos possíveis (ele nasce dela e também volta pra ela de alguma forma). Mas eu tendo a ver e a entender a escrita literária, o gesto de escrever, já como um gesto performativo de per si, e o de ler também. E aqui menciono alguns detalhes mais formais, mais técnicos do poema - não custa nada lembrar um pouco os procedimentos que elegi, porque, inclusive, as formas literárias também são historicizáveis/ historicizadas, já que cristalizam uma certa temporalidade dos usos da linguagem: cada verso do poema é 1) o que eu escrevi no google procurando e/ou 2) páginas em que cliquei durante a busca por informações e/ou 3) traduzi no google translate; e são 3 as línguas que se cruzam, português, inglês e alemão, porque a pesquisa foi feita nesse cruzamento. Sempre que li publicamente esse poema, éramos também três pessoas lendo, justamente para dar corpo a esse eco/coro e para jogar com essas variações linguísticas. O poema também foi traduzido para o alemão e foi muito fácil entender como essa tradução seria feita: o que está em português vai para o alemão, o que está em alemão vai para o português e o que está em inglês permanece em inglês.

A placa, a reivindicação da placa, é por entender que sim, as placas têm uma função, e essa função também está ligada à memória, nós precisamos não esquecer. Nós também precisamos nos lembrar. E isso é ideológico também. Principalmente num país destruidor de memórias… O caso do museu nacional, mas também o dos dois brutamontes destruindo a placa com o nome da rua Marielle Franco são exemplos recentes que nos fazem pensar de novo sobre isso. Foi lindo ver nessa última manifestação no Rio de Janeiro a foto de milhares de pessoas segurando placas com o nome da Marielle. E nome de rua, não é? Ou seja, é nossa tarefa também escrever essa história, reescrevê-la. Enfrentar essas tensões. É a nossa história que me interessa escrever, para que, justamente, não sejamos enterradas vivas.

Érica Zíngano

Poeta e artista visual

 

O que você achou desse conteúdo?