Possuir acesso igualitário à assistência médica, educação e oportunidades de emprego — e também sentir o ritmo dos versos de sua canção preferida, visitar a exposição de um escultor, acompanhar a nova peça de teatro de um grupo local. Mais de 45 milhões de brasileiros vivem a experiência de alguma deficiência, segundo informações do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, e muitas dessas pessoas têm direitos fundamentais negados. O debate sobre acessibilidade ultrapassa estruturas físicas: como construir uma sociedade que não seja apenas acessível, mas sobretudo inclusiva e integrativa? Como a arte pode promover uma outra perspectiva sobre os corpos e suas potências singulares?
O capacitismo, sistema de opressão que nega a inclusão pessoas que vivem a experiência de alguma deficiência, afeta o usufruto cultural e também o lugar de produção artística. Na contramão dessa lógica excludente, o projeto Fotografia Tátil possibilita que cegos fotografem paisagens e conheçam o resultado do trabalho impresso em madeira a partir do toque. Criada pelo professor do curso de Design da Universidade Federal do Ceará (UFC) Roberto Vieira em 2014, a iniciativa surgiu a partir de um contato da Associação de Cegos. "Nossa primeira oficina de fotografias para cegos foi em 2014, nós pesquisamos como seria esse processo de fotografar sem a visão. Usamos a técnica da audiodescrição para que a pessoa cega imagine como é aquele espaço, descrevemos o enquadramento no LCD e quando ela achar que está adequado, tira a foto. Em nenhum momento a gente interfere ou influencia. Para que o processo seja completo, a gente precisa fazer uma formação para que os participantes entendam o que é uma boa foto, as regras de composição", explica. No primeiro semestre deste ano, o grupo fez uma parceria com o Museu da Fotografia e assistidos pelo Instituto dos Cegos frequentavam oficinas semanais no equipamento. "No próximo semestre, vamos ter outro grupo também no Museu da Fotografia e o objetivo é fazer uma exposição no final do ano com os trabalhos produzidos nos dois momentos. Pretendemos ainda fazer peças táteis de pintura e também desenvolver um projeto de música para surdos em parceria com um grupo de violoncelos coordenados pela professora Dora Utermohl, do curso de Música da UFC", adianta o docente.
Bolsista voluntária do projeto Fotografia Tátil, a professora de italiano Rebeca Barroso começou a compreender a fotografia como expressão artística a partir do contato com a iniciativa. "Eu testo as peças para ver se realmente é aquilo, ouço os áudios, leio as descrições em braille…", enumera. A docente, também como uma mulher cega, acredita que "rampas são o mínimo que qualquer espaço deveria oferecer" na Cidade. "Eu acho que os espaços não estão adequados ainda. A inclusão mesmo não é só acessibilidade, não são só rampas: é o preparo das pessoas para receber o público, é realmente integrar as pessoas. Não é criar espaços diferenciados somente para algumas pessoas e outros para as demais, porque sempre fica aquela coisa de 'normais' e 'deficientes'. Eu não gosto desse termo 'deficiente' porque parece ressalta a única característica que seria 'ruim' de uma pessoa. Eu não sou só 'a cega': eu sou a estudante, a pessoa, a garota, a amiga…", defende. Aos 29 anos, Rebeca sustenta o papel transformador da arte. "Ver arte, ouvir arte, estudar arte, pensar sobre arte te faz construir um pensamento crítico, te faz refletir sobre questões que você não refletiria sem abrir novos horizontes e alcançar outros parâmetros", complementa.
O psicanalista Mauro Reis Albuquerque pontua que os desafios enfrentados para o acesso às obras de arte não se restringem ao interior de museus, teatros e salas de cinema — cadeirante, ele escolhe os locais que frequenta em Fortaleza de acordo com a estrutura oferecida: "Muitas vezes, a própria chegada ao local é complicada. No Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, que concentra vários eventos culturais, toda a estrutura do chão é de pedras portuguesas e isso já é um complicador prévio. Além disso, tem rampas muito estragadas pelo tempo e uma delas tem um buraco enorme no meio...", enumera. "Existem muitas outras acessibilidades que são necessárias e não se encontram nesses espaços como guias em braille, piso tátil, audiodescrição dos filmes... Por mais que esses espaços que eu frequento permitam a minha existência — e falar isso dessa forma é complicado porque é como se eu tivesse que pedir permissão para estar nesses cantos, mas não é assim: são espaços públicos e eles têm obrigações —, eles não permitem que outras pessoas usufruam", continua.
"Quando falamos dessas fotografias impressas em madeira e relevos, eu penso que todo tipo de adaptação de uma obra vai ser uma forma de tradução. As traduções alteram a obra e isso não é um problema: praticamente todo mundo vai precisar que algo seja traduzido em algum momento. Essas traduções que são feitas para transformar a obra para que elas sejam desfrutadas por outros sentidos permitem um outro tipo de fruição e isso é muito importante. Quando a gente está falando de acessibilidade, a gente está falando de diversidade, de diferenças. Não existe só um tipo de acessibilidade, não existe só um tipo de pessoa com deficiência. Mesmo quando é uma deficiência semelhante, cada um é diferente e as pessoas se relacionam com essas deficiências de uma forma diferente — então as obras têm que ser diferentes para diferentes pessoas e formas de fruir. Quem pode fruir a arte? A gente não pode tirar essa discussão de jogo porque também é responsabilidade dos artistas", questiona Mauro.
Na outra ponta do processo artístico, a atriz e produtora Jéssica Teixeira endossa as indagações de Mauro. “Ao mesmo tempo em que percebo que o público tem que ter esse acesso, me pergunto: mas os artistas também não têm? Eu conheço vários artistas, bailarinos e atores que têm nanismo ou que não tem uma perna, grupo de teatro de cegos… E os artistas? Como eles se comunicam com a instituição? Nas gestões e curadorias não existe ninguém que seja surdo, que tenha baixa visão, que esteja convivendo nessas pautas e reuniões. É preciso conviver; é preciso que tenha alguém que passe por uma série de singularidades nas gestões culturais, nas curadoria de festivais de cinema e exposições de museu para reverter essa lógica de comunicação”, provoca.
“Eu não sei falar sobre acessibilidade porque isso não foi me dado — eu não tive esse lance de me darem acesso ou de me capacitar, essas palavras são até estranhas na minha boca. Esse acesso eu tive que arrancar, entrar de qualquer maneira. Para fazer o que eu faço hoje, eu tive que ir lá e fazer acontecer. Rampa e elevador não é acessibilidade, isso está em outro local. Falar de arquitetura, hoje, me parece muito ultrapassado. Acredito que as pessoas só consegue entender quando elas passam a conviver. Pra mim, acessibilidade é isso: que as pessoas convivam. Acesso é comunicação, é informação, é se enxergar. Vamos nos escutar. Nós temos direito de existir e aparecer”, finaliza Jéssica.