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Dia Nacional do Documentário Brasileiro acende discussões sobre o presente e o futuro da área
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Dia Nacional do Documentário Brasileiro acende discussões sobre o presente e o futuro da área

| Novas perspectivas | A partir da celebração do Dia Nacional do Documentário Brasileiro, comemorado amanhã, cineastas discutem o gênero sob o prisma de diversidade, relação com o público e políticas públicas
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O Processo, de Maria Augusta Ramos (Foto: divulgação)
Foto: divulgação O Processo, de Maria Augusta Ramos

O teórico de cinema brasileiro Jean-Claude Bernardet, em 1985, analisou o documentário feito no País entre os anos 1960 e 1980 no livro Cineastas e imagens do povo, obra central para entender a produção local do gênero e na qual debateu linguagem, estética e ideologia. De lá para cá, o audiovisual brasileiro passou por mudanças de cenário, estrutura, linguagem e tecnologias, tendo sido descontinuado, depois retomado e, até então, fortalecido. Partindo da celebração do Dia Nacional do Documentário Brasileiro, comemorado amanhã, 7, o Vida&Arte abre espaço para cineastas discutirem o impacto do atual contexto das políticas públicas no audiovisual, a maior diversidade de vozes e olhares de quem documenta no País e os desafios de distribuição e exibição.

Se na obra de Bernardet a ampla maioria de filmes analisados era dirigida por homens, dados da publicação Participação Feminina na Produção Audiovisual Brasileira 2018, do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual da Agência Nacional do Cinema, mostram que o documentário é o gênero com maior participação feminina na direção - dos lançamentos daquele ano, 33% foram dirigidos por mulheres. Para a cineasta e jornalista Rosane Gurgel, diretora de curtas como Caminho Sem Volta (2012) e Close (2017), ainda falta maior participação feminina em outras funções. "A desigualdade de gênero no ramo cinematográfico ainda é reflexo da desigualdade de gênero no mercado de trabalho diário. Há pouca representatividade na direção e, principalmente, em funções compreendidas como 'trabalho de homem', como maquinaria, elétrica, operação de câmera", observa.

O aumento de cineastas mulheres, para a cubana radicada no Ceará Margarita Hernández, foi perceptível com o tempo. Ela mesma estreou em longas documentais com o recente Che - Memórias de um Ano Secreto (2018), selecionado para a última edição do Festival É Tudo Verdade. Além disso, está há quase duas décadas envolvida na organização e curadoria do Cine Ceará. "As mulheres apareciam mais no festival como produtoras, sempre foram muito fortes nesse setor. Depois, veio esse pulo na direção", contextualiza Margarita, que inclusive trabalhou como produtora-executiva de diferentes documentários do cearense Wolney Oliveira antes de estrear como diretora de longas. "Isso foi a minha grande escola, pela qual me animei a dirigir", conta.

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"No Cine Ceará deste ano, dos sete longas na competição, quatro são de mulheres. Nos filmes que recebemos, mais de 30% eram de diretoras", avança. Entre os quatro selecionados, dois são documentários - Vozes da Floresta, de Betse de Paula, e Ressaca, co-dirigido por Patrizia Landi e Vincent Rimbaux. "Não tem aumentado só o número de mulheres dirigindo filmes do gênero, mas a qualidade. O Processo e Democracia Em Vertigem são grandes sucessos de diretoras", aponta Margarita, citando os filmes de Maria Augusta Ramos e Petra Costa, respectivamente, ambos abordando assuntos da política nacional.

"As políticas públicas dos últimos anos, com a Ancine e o Fundo Setorial do Audiovisual, propiciaram um maior número de diretoras, e não só, mas também de equipe, como diretoras de fotografia, técnicas de som. Tenho trabalhado em grande parte com uma equipe muito feminina nos últimos anos e acho muito importante", defende Maria Augusta. O filme da diretora aparece na lista das 20 maiores bilheterias do cinema nacional no Informe de Distribuição em Salas 2018, publicação da Ancine, ocupando a 16º posição e sendo o único documentário elencado. "Eu acho que o público tem interesse em documentário, sim. Talvez o maior problema seja justamente a dificuldade dele chegar e ficar um determinado tempo nas salas de cinema - o que é uma dificuldade do cinema brasileiro, do cinema autoral", opina a cineasta.

O Processo arrecadou mais de R$ 915 mil, somando mais de 65 mil ingressos vendidos. "Ele é longo, aborda um momento político e histórico conturbado, doloroso, e as pessoas foram assistir. Tem interesse, a gente não pode ter uma visão paternalista do público. Esse sucesso que O Processo teve nos cinemas prova isso. Tem que ter estímulo, porque a experiência de um documentário no cinema é muito interessante. É importante ter essa experiência coletiva, estamos precisando cada vez mais voltar ao coletivo", avalia Maria Augusta.

A chegada aos cinemas, já desafiadora, está sendo ainda mais difícil no contexto das políticas públicas e de cortes. Para o filme Bixa Travesty, documentário de repercussão internacional sobre a cantora Linn da Quebrada dirigido por Kiko Goifman e Claudia Priscilla, a situação é de entrave por conta dos cortes de patrocínios da Petrobras. O longa ganhou no Festival de Brasília de 2018 o prêmio de distribuição da estatal, que depois afirmou que não teria como entregar os valores - o imbróglio afeta também filmes premiados em outros festivais, como os documentários Torre das Donzelas e O Outro Lado da Memória. "A gente está tentando resolver isso. Quero crer que a Petrobras vai mudar de ideia", confia Kiko.

As questões de bilheteria e exibição que rondam o gênero, observa o diretor, têm relação com a formação de público. "O problema é de formação. Como um filme pequeno, o documentário muitas vezes é o primeiro a sair das salas, é esmagado", avalia. Uma saída para estimular o acesso é apostar em outras mídias. "Pode até ter um preconceito, 'vou sair de casa pra ver um documentário nacional? Podem-se buscar parcerias, como com o Canal Brasil (que co-produz Bixa Travesty), ou na Internet, como no caso do filme da Petra que foi para a Netflix", sugere. Apesar dos problemas, Kiko comemora a repercussão que o filme vem causando e também o gênero em si. "Bixa Travesty tá fazendo carreira linda no mundo, estreou em mais de 26 cidades da França. Filmes brasileiros já estiveram na lista de pré-indicados ao Oscar junto com O Processo, o gênero traz reflexões profundas", elenca.

O bom momento citado é comprovado pelo Informe de Distribuição em Salas, que mostra que 85 filmes do gênero foram lançados em 2018, um recorde. "Com leis de incentivo já é difícil produzir um filme no Brasil, imagine sem", afirma Rosane. "Filmes devem ser feitos e a gente não pode ter nenhum tipo de censura. Um determinado tipo de visão crítica - não é nem ideológica - diferente do pensamento do governo vai ser reprimida, subtraída. Isso é muito sério", considera Maria Augusta. "É claro que o documentário vai sofrer, todos os filmes vão, e certamente os mais críticos vão sofrer mais", prevê. Para Margarita, o momento não pode impedir que assuntos diversos sejam debatidos. "O documentário está ameaçado por esse controle das temáticas, que é censura, mas penso que a gente ainda conseguirá fazer, nem que seja com recursos próprios, e colocar tudo no ar. Não por isso vão se deixar de contar as histórias", acredita.

Cabra Marcado Para Morrer, documentário de Eduardo Coutinho
Cabra Marcado Para Morrer, documentário de Eduardo Coutinho

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