Logo O POVO+
Culturas vivas e fortes
Vida & Arte

Culturas vivas e fortes

| REFLEXÕES | Dia Internacional dos Povos Indígenas é celebrado nesta sexta-feira, 9. Representantes de etnias cearenses defendem debate social sobre o papel dos povos originários na construção do Brasil
Edição Impressa
Tipo Notícia Por

Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara, Tapuia-Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia, Tupinambá. Em 1863, um Relatório Provincial sobre a região do Ceará erroneamente sentenciou: "Já não existem aqui índios aldeados ou bravios". Hoje, transcorridos 156 anos do apagamento registrado em documento oficial, mais de 26 mil indígenas estão aldeados por cidades cearenses. Além dos 14 povos espalhados por 18 municípios já registrados pelo Estado, outros grupos continuam se levantando e se reconhecendo, como os Karão-Jaguaribara. Na próxima sexta-feira, 9, o Dia Internacional dos Povos Indígenas é celebrado, mas o brutal assassinato do cacique Emyra Waiãpi, no último 23 de julho no Amapá, suscita um incômodo manifestado por Benício Pitaguary: "Como os brasileiros conseguem ficar alheios a todas essas injustiças e atrocidades que são feitas contra os povos indígenas?"

Criada pela Organização das Nações Unidas para Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em dezembro de 1994, a data é uma referência ao dia da primeira reunião do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Populações Indígenas. "Mas, quando se fala em Dia dos Povos Indígenas, não dá para comemorar. A reflexão mais importante que essa data traz é sobre memória, é sobre quem nós somos nessa sociedade brasileira. Como a gente pode pensar em uma identidade nacional se não reconhecemos esses moradores, esses povos originários?", continua Benício.

Estudante de Geografia, Benício pertence ao povo Pitaguary, organizado em quatro aldeias entre os municípios de Maracanaú e Pacatuba: Horto, Olho d'água, Monguba e Santo Antônio — são mais de 4.400 indígenas distribuídos em 1,7 mil hectares de territórios ainda não demarcados. Residente em Fortaleza, Benício Pitaguary iniciou uma profunda articulação com sua cultura ancestral ao investigar as pinturas corporais das mais diversas populações: o grafismo. Hoje, o artista plástico é também articulador do Museu Indígena Pitaguary - na aldeia Monguba -, centro de memória e referência. "Pra gente, esse é o papel da arte na luta pelos povos indígenas: os museus e demais espaços de memória são também a garantia dessas tradições. A cultura indígena é ágrafa, ela tem sua base na oralidade, então muitos povos tiveram tradições dizimadas por surtos de gripe e febre amarela e não tiveram tempo de registrar isso. Os museus são formas de contar a nossa história diariamente", defende.

Confira galeria:

Clique na imagem para abrir a galeria

Para Benício, só se celebra o que se conhece — e as sociedades contemporâneas no mundo inteiro ainda não compreendem a pluralidade dos povos indígenas. "Essa nomenclatura 'índio' é totalmente errônea: traz um esteriótipo e reforça o grande erro de um 'descobrimento' no processo colonial. O nome índio reforça toda essa mentira e não é a forma que nos reconhecemos, só remete a uma homogeneização. Hoje, somos 305 povos e 274 línguas faladas no Brasil", contesta.

Merremi Karão, pertencente ao povo Karão-Jaguaribara, indica a necessidade de um contínuo processo social de reflexão sobre os impactos da colonialidade nos povos negros e indígenas. "A gente acaba esquecendo que os povos originários possuem suas culturas vivas. Nós, do povo Karão-Jaguaribara, somos um exemplo de quebra de silêncio: não somos povos que estão surgindo agora, mas estamos sim quebrando o silêncio novamente. Estamos mostrando que somos um povo resistente há 519 anos", pontua. Povos que tocam e profetizam chuva, os Karão iniciaram um recente processo de levante juntos aos pajés e caciques, chamados de troncos sábios. "Durante muito tempo, fomos um povo massacrado e vivíamos escondidos. Estamos em um contexto político muito difícil em relação aos povos originários, mas isso não nos amedronta de jeito nenhum: quanto mais o tempo passa, mais força a gente tem para lutar. Nosso povo vai caminhando mediante a força que a gente tem, inclusive lembrando dos nossos mortos. Não esquecemos dos nossos mortos. Se a gente está aqui firme e forte, é porque mantemos eles e os carregamos nas costas", complementa.

Presidente da Associação das Mulheres Indígenas Jenipapo-Kanindé, Eliane Alves acredita que essa união ancestral e o registro das tradições é fundamental para manter essas populações vivas — ainda que mediante a um histórico e desenfreado genocídio. Localizado na Lagoa Encantada, município de Aquiraz, o povo Jenipapo-Kanindé é composto por cerca de 400 pessoas em 26 famílias lideradas pela primeira cacique mulher do Brasil: a Cacique Pequena. "A gente tem grande dificuldade em divulgar as festas tradicionais da aldeia, como a farinhada, e as grandes mídias pouco fazem essas gravações. Uma das melhores formas, então, era não depender do homem branco e a gente mesmo fazer o nosso próprio registro. Criamos a Escola de Cinema Indígena, onde 40 alunos da etnia fazem as fotos e têm um olhar etnográfico que é muito importante pra gente", compartilha. Primeira escola profissionalizante de cinema para povos indígenas no Nordeste, a iniciativa surgiu em 2018.

Situados no semiárido cearense, cerca de seis mil Potyguaras estão distribuídos entre Novo Oriente, Crateús, Tamboril e Monsenhor Tabosa. Renato Potyguara, cacique há 10 anos, ressalta a construção de um processo de afirmação e resistência dos povos indígenas no Ceará. "É importante a gente manter a nossa tradição viva e forte, porque é nela que nos seguramos. Do caçar, do pescar, do comer o baião ali na rede, estar em comunhão com a comunidade e a família, a questão do plantio... A gente bota um cocar na cabeça com muito orgulho. É preciso divulgar as nossas histórias para manter o povo vivo: a gente não pode adormecer porque já foi muito tempo de perseguição, de massacre, de tortura, de extermínio e de genocídio. A cada minuto de vida, nós precisamos deixar para os nossos curumins da nova geração a nossa história para eles darem continuidade", finaliza.

O que você achou desse conteúdo?